(AP-Photo.jpg 

Um dia antes de a presidenta da Argentina, Cristina Kirchner, fazer uma cirurgia para drenar um hematoma no crânio, líderes da oposição declararam que tudo poderia ser apenas um jogo de cena. Afinal, disseram eles, Cristina está perto de sofrer uma derrota avassaladora nas eleições legislativas de 27 de outubro, e fugir dos holofotes seria bastante apropriado. Segundo essa teoria conspiratória, simular um problema de saúde sensibilizaria uma boa parte do eleitorado. Por mais absurdo que declarações assim possam parecer – Cristina foi mesmo obrigada a fazer a cirurgia depois de sofrer um leve traumatismo craniano provocado por uma queda –, elas revelam como a guerra política no país está acirrada. Se não se respeita nem sequer o estado de saúde de um adversário das urnas, é de se imaginar como será pesada a disputa nos próximos dias. Para Cristina, o insucesso agora anularia suas chances de mudar a Constituição para almejar um terceiro mandato. A eleição presidencial é em 2015, mas o pleito de outubro poder marcar o fim da era Kirchner no país.

1.jpg 

O surpreendente no jogo político da Argentina é a batalha interna entre os próprios peronistas. Cristina julga-se a herdeira natural da doutrina. Seu principal adversário, o prefeito da cidade de Tigre, Sergio Massa, considera-se a única voz capaz de renová-la. Governadores de ideologias diversas e alianças variadas acusam ambos de traírem os ideais do peronismo. No interior do país, caudilhos de pequenas regiões articulam movimentos que defendem o surgimento de uma terceira via, não ligada a Cristina ou Massa. No peronismo, cabem políticos de esquerda e de direita, radicais ou não, e o fator que os une é a busca incessante para ganhar e conservar o poder. Desde que Juan Domingo Perón fundou a corrente que carrega seu nome, há 67 anos, o peronismo governou o país por mais da metade do tempo (são 34 anos no comando). Trata-se de uma força aparentemente indestrutível. Os últimos dois presidentes argentinos não peronistas nem sequer completaram seus mandatos. Raúl Alfonsín, da União Cívica Radical, renunciou em 1989 e, Fernando de La Rúa, do mesmo partido, em 2001. 

Peronistas de carteirinha, Cristina e Massa têm visões opostas sobre uma questão primordial: a presença do Estado na economia. Cristina não só expropriou empresas estrangeiras como é a favor da nacionalização de setores estratégicos (leia quadro). Massa é visto como um liberal moderado e fez carreira política defendendo a privatização de empresas públicas deficitárias. Segundo especialistas, ele é atualmente o nome mais forte para as eleições presidenciais de 2015. “Hoje o grupo ligado aos Kirchner está em decadência e não possui uma liderança”, diz Ricardo Sennes, coordenador do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP). Em seus discursos, Massa bate na tecla do fomento dos investimentos e sabe que assim fere Cristina em seu ponto mais fraco. Nos dois mandatos da presidenta, inúmeras empresas estrangeiras deixaram o país, incomodadas com a instabilidade econômica e temerosas de uma possível onda de estatização.

2.jpg 

No fundo, o que os peronistas procuram é um novo caudilho, com carisma e autoridade suficientes para liderá-los. Por isso mesmo, a disputa política tende a ser cada vez mais encarniçada. “Em 2015, vai ser uma verdadeira guerra”, diz o professor Pedro Costa Júnior, especialista em relações internacionais. “Há muito tempo o país não testemunhava uma disputa tão claramente polarizada, desta vez entre os que são a favor e os que são contra o kirchnerismo.” Na semana passada, enquanto Cristina convalescia em um hospital, o vice-presidente Amado Boudou assumiu o comando do país. Figura polêmica, conhecido como o “vice roqueiro”, ele foi chamado às pressas para voltar a Buenos Aires, já que se divertia em passeios de moto pelo interior do país com sua Harley Davidson. Envolvido em diversas denúncias de corrupção, Boudou provavelmente estará na presidência durante as próximas eleições legislativas. Resta saber se isso é bom ou ruim para Cristina. 

fotos: Pablo Molina/ap photo; Municipalidad de Tigre/Handout/reuters; DIDA SAMPAIO/ESTADãO