Nós tínhamos pátria, agora temos mátria!" A brincadeira de uma assessora da presidente eleita do Chile, Verónica Michelle Bachelet Jeria, resume o clima eufórico que tomou conta do país no início da cálida noite de domingo 15, quando foi anunciado que a candidata socialista da Concertación (coalizão de centro-esquerda que governa o país desde 1990) vencera, como previam as pesquisas, o segundo turno das eleições presidenciais, obtendo 53,49% dos votos contra 46,50% dados ao candidato da direita, o empresário Sebastián Piñera. “Mátria”, sim, porque aos 54 anos a médica Bachelet, filha de um brigadeiro que morreu na prisão, ela mesma ex-prisioneira política da ditadura do general Augusto Pinochet, se tornou a primeira mulher a ser eleita para a Presidência de seu país, fato inédito também na América do Sul. O episódio ganha maior relevância por ter ocorrido justamente no Chile, uma das sociedades mais conservadoras da América Latina: lá, a Igreja Católica ainda tem um peso considerável – o divórcio, por exemplo, só foi aprovado em 2004 –, não existe Carnaval, como na maioria dos países de tradição latina, e homens e mulheres ainda votam em locais diferentes. “Tenho todos os pecados juntos: sou mulher, divorciada, socialista e agnóstica”, disparou Bachelet quando em campanha. Mas no discurso da vitória ela contemporizou: “Fui vítima do ódio e dediquei minha vida a reverter esse ódio e transformá-lo em compreensão, tolerância e, por que não dizer, em amor”, disse, tossindo e quase afônica, diante de uma multidão de cerca de 200 mil simpatizantes que se aglomeravam em frente ao Hotel San Francisco, na alameda Libertador Bernardo O’Higgins.

O Chile que Michelle Bachelet vai presidir a partir de 11 de março vem sofrendo, nos últimos anos, uma revolução silenciosa que salta aos olhos dos estrangeiros. Quem percorre Santiago se depara com construções moderníssimas, prédios antigos restaurados, ruas limpas e arborizadas com poucos camelôs e mendigos – comparando-se com qualquer metrópole latino-americana –, além de celulares
e cybercafes em profusão. Mas, muito mais do que sinais exteriores de modernidade, é possível perceber que os chilenos estão vivendo tempos de tempestuosa liberação cultural. Sem falar da aprovação do divórcio em 2004, tome-se, por exemplo, a adoção da “pílula do dia seguinte”, quando Bachelet era ministra da Saúde, ou a campanha para o uso de preservativos para prevenir a Aids, coisas impensáveis num país patriarcal. Essa distensão cultural (“destape”, como dizem os chilenos) pode ser facilmente constatada em triviais cenas cotidianas. Na década de 1990, causou sensação em Santiago a ousadia do chamado “café com pernas”: um bar cuja principal atração eram as garçonetes – nem sempre bonitas, é verdade – vestidas com microssaias, meias e salto alto a sugerir prazeres muito mais calientes do que o simples sabor do café expresso. Hoje, esses “cafés com pernas” se espalharam pela cidade, apenas com nomes mais recatados, como Café Caribe, Café Haiti ou coisas do gênero. Os chilenos adoraram e até casais freqüentam hoje esses locais com naturalidade. Nem todos, contudo, aprovam essas mudanças. “Não há mais respeito por nada. Essa Bachelet quer ser presidente, mas nem cuidar dos filhos ela sabe”, diz, raivoso, o pequeno empresário José Ramón Correa. “No tempo dos militares havia ordem e não tínhamos tanta indecêndia e criminalidade”, conclui.

Mas a ditadura que, durante 17 anos (1973-1990), mergulhou o país no medo, começa a virar coisa do passado. O Chile está terminando o terceiro governo da Concertación por la Democracia (coalizão de democratas-cristãos, socialistas e radicais que se uniram para fazer frente a Pinochet). O presidente Ricardo Lagos, também socialista, assumiu em 2000 em plena crise econômica do final dos anos 90, mas termina seu mandato de seis anos deixando um país estabilizado, com um crescimento de 6% ao ano desde 2004 – graças, principalmente, à alta dos preços do cobre, que ainda responde por um terço das exportações chilenas. Mais importante, Lagos acabou com os mais grotescos resquícios da Constituição da ditadura: os senadores “biônicos” e a proibição do Poder Executivo de nomear livremente os comandantes das Forças Armadas. Os militares também admitiram abertamente a violação de direitos humanos durante a ditadura e dezenas de oficiais foram presos ou processados. Já o outrora todo-poderoso Pinochet está em prisão domiciliar, acusado não apenas de assassinatos políticos, mas de corrupção, o que lhe custou o apoio dos setores mais conservadores, principalmente no Exército. Com tudo isso, não é à toa que a popularidade do presidente Lagos seja recorde, registrando 75% de apoio. Em várias oportunidades, ISTOÉ viu o mandatário sendo ovacionado em público.

Modelo – A ironia, dizem, é que os alicerces dessa modernização foram construídos justamente durante o regime pinochetista. Essa, pelo menos, é a opinião generalizada de analistas de todos os matizes, que assinalam que os governos da Concertación não mudaram os fundamentos da política econômica neoliberal iniciada nos “anos de chumbo”. Nem todos pensam assim, contudo. “É certo que o Chile começou a crescer em meados dos anos 80, quando se estabeleceu uma política de abertura e promoção das exportações, mas a ditadura nos entregou um país pobre e desigual. Nos convertemos numa nação decente e atrativa na medida em que se assentaram as normas de convivência democrática”, pondera a jornalista Patricia Politzer, autora do livro Chile: de qué estamos hablando? “Quando, ao lado de cuidar das políticas macroeconômica para crescer, se impôs uma política social ativa e consistente, especialmente em matéria de habitação, saúde e educação. Foi então que começamos a decolar. Prova disso é que os investimentos estrangeiros nos últimos 30 anos, entre 1974 e 2004, atingiram US$ 75 bilhões, dos quais 88,5% entraram no país depois de 1990”, conclui. “Recebemos um país com um índice de 40% de pobres e os governos da Concertación o reduziram a 18%”, completa o ex-presidente Patricio Aylwin.

Ainda assim, o país que Bachelet recebe não é um mar de rosas. Com um mandato encurtado de seis para quatro anos, sem direito à reeleição, a presidente tem o desafio de reformar o sistema previdenciário privatizado e excludente, diminuir o desemprego e a desigualdade social e completar a reforma política. De qualquer maneira, no Chile a realidade já venceu o medo.