14/07/1999 - 10:00
Explica a geologia que o cristal, substância sólida que se caracteriza pela transparência, é um diamante prematuro, que tende ao fracionamento e à dilaceração. A simbologia diz que representa o plano intermediário entre o visível e o invisível e, embora duro, pode-se ver através dele. Alguns místicos o usam como uma peça produtora de visões. Nos contos de fadas, os palácios de cristal em geral evocam o inconsciente, isto é, aquilo em que não se pode pensar. É muito fértil, assim, a imagem do cristal escolhida pelo escritor mexicano de origem panamenha Carlos Fuentes como substância para a fronteira que separa os Estados Unidos do México, lugar de fugitivos, contrabandistas, traficantes, mafiosos e desesperados. Limite entre dois mundos que se estranham. Esse horizonte é um território do vai-e-vem, no qual o mundo rico se abastece do miserável e este sobrevive às expensas do primeiro.
A fronteira de cristal (Rocco, 224 págs., R$ 25) reúne nove contos de qualidade oscilante. Eles guardam entre si uma relação discreta, mas eficaz, já que são habitados por personagens que se ligam ou se repetem. A impressão que fica é que Fuentes tentou escrever um romance e do projeto fracassado resultou um livro de contos. Às vezes estupendo como em A moça da capital, relato que abre o livro, inquietador como em As amigas, história da simbiose entre patroa e empregada, outras vezes um pouco excessivo como em A raia do esquecimento – um conto até devastador, mas que imita Samuel Beckett – e fracassado mesmo como na história bem-intencionada, mas prolixa de Os despojos.
Fuentes, que recentemente esteve no Brasil para receber o Prêmio da Latinidade, da Academia Brasileira de Letras, escreve para refletir sobre o mundo em que vive. Razão pela qual, mesmo quando se apressa ou até fracassa, seus contos guardam um calor incomum. O cristal que separa o México de Fuentes (ele na verdade nasceu no Panamá, mas se criou na Cidade do México) do grande império americano é mais cruel do que parece. O racismo, a exploração disfarçada em amizade, o interesse camuflado na etiqueta do "bom negócio" são aspectos nada agradáveis de uma fronteira que, retida no cristal mais perfeito das palavras, resume o mundo desigual que nos cabe habitar.