09/02/2000 - 10:00
Os herdeiros de Adolf Hitler voltam a causar arrepios na espinha dorsal da Europa. Mas, desta vez, não na forma patética de bandos de skinheads marginais, mas como respeitáveis políticos sócios do poder. Depois de décadas convivendo com uma coalizão de governos social-democratas e conservadores moderados, recém-admitida na União Européia (UE), a Áustria agora está prestes a empossar um governo com a participação da extrema direita xenófoba e racista. O Partido da Liberdade (FPO), liderado pelo esportista Jörg Haider, 50 anos, uma espécie de Jean-Marie Le Pen austríaco, fechou um acordo com o Partido Popular (democrata-cristão) de Wolfgang Schüssel. Na quinta-feira 3, o presidente da Áustria, Thomas Klestil, a contragosto, acabou cedendo à formação da coalizão. Para tentar aliviar a pressão internacional, Haider foi obrigado a renegar publicamente seu passado neonazista e a assinar um documento em que se diz que a Áustria "aceita sua responsabilidade na trágica história do século XX e pelos horrendos crimes cometidos durante o regime nacional socialista". Era uma referência ao período do Anschluss, quando a Áustria foi anexada – sem nenhuma oposição – à Alemanha nazista liderada por um ex-cabo austríaco.
Elogios às SS
Filho de um oficial nazista, Haider na infância, segundo um de seus amigos, praticava esgrima, utilizando um boneco de palha com a figura do caçador de nazistas Simon Wie-senthal. Não por acaso, despontou no cenário austríaco despertando paixões e ressentimentos políticos adormecidos. Em 1990, por exemplo, ele disse numa reunião anual de veteranos da Segunda Guerra Mundial, famosa por atrair ex-oficiais da SS (tropas de elite nazistas), que "nossos soldados foram mais vítimas do que criminosos". Um ano depois, a afirmação de que o III Reich desenvolvia "uma metódica política de pleno emprego" lhe custou o cargo de governador da Caríntia. Mas talvez a declaração mais forte tenha sido feita em 1995, quando ele se referiu aos campos de concentração nazistas como "campos de trabalho corretivo". À evocação dos méritos do nacional-socialismo, Haider agregou os temas caros à extrema direita pós-moderna, como a pregação contra os imigrantes e a integração com a União Européia. No coração da Europa, a Áustria está exatamente na fronteira com os países ex-comunistas e a maioria da população sempre temeu um maciço fluxo dos vizinhos do Leste Europeu.
Mal Schüssel e Haider sentaram-se à mesa e a saraivada de protestos começou. Em Viena, cerca de 15 mil manifestantes foram às ruas protestar contra a entrada do FPO no governo. No âmbito internacional, o presidente rotativo da União Européia, o português António Guterres, determinou na sexta-feira 4 sanções contra a Áustria. "Se um partido que tem um discurso xenófobo e não respeita os valores essen-ciais da família européia chega ao poder não podemos manter relações idênticas ao passado", declarou Guterres. Os outros 14 membros da UE já tinham dado sinais de um possível afastamento do novo governo austríaco, caso fosse confirmada a entrada de Haider. O ministro das Relações Exteriores da Bélgica, Louis Michel, disse que "a nova coalizão na Áustria nos obrigará a formar uma ala de resistência à ressurreição das idéias fascistas na Europa". O presidente francês, Jacques Chirac, alvo constante do xenófobo austríaco, lidera um movimento para que os países europeus fechem suas embaixadas em Viena. Ehud Barak, primeiro-ministro de Israel, decidiu retirar seu embaixador na Áustria e afirmou que Haider jamais pisará em território israe-lense. O presidente Bill Clinton entrou na onda dos europeus e também assumiu uma posição contrária a Haider no poder. "Adotaremos os mesmos passos tomados pelos europeus", garantiu. "A Áustria não é um país que requer monitoramento de sua democracia", respondeu Schüssel à atitude de repúdio. Do outro lado, comemoraram os líderes de extrema direita da Europa, como Jean-Marie Le Pen, que saiu na rua para aplaudir a vitória do Partido da Liberdade.
Pisando em ovos
Nesse episódio controverso, parece ter ficado claro o nascimento da dimensão propriamente política da União Européia. "O euro diminuiu a soberania de membros da União Européia no campo financeiro. Agora estamos lentamente diminuindo a força política de cada país em prol do continente europeu", afirmou a analista francesa Dominique Moïsi. Mas a União Européia, que aceitou a Áustria como membro em 1994, ainda não tem idéia das consequências de um possível isolamento do governo austríaco. Constitucionalmente, não há nada de errado em ter o líder do Partido da Liberdade no poder. Afinal, sua posição foi conquistada legitimamente dentro das regras do jogo democrático. O próprio presidente austríaco, resistente à polêmica coligação, lembrou que numa democracia "o que conta é a vontade do povo e não as preferências pessoais". Resta então saber como serão as relações entre a Áustria e seus parceiros da União Européia daqui para dian-te. Mas a não ser que o novo governo cometa uma grande besteira, é possível que a tendência seja a acomodação. Até porque uma pressão excessiva da UE é tudo o que Haider precisa para se tornar chanceler nas próximas eleições. É bom lembrar que em 1986, apesar dos protestos mundiais, o ex-oficial nazista e ex-secretário-geral da ONU Kurt Waldheim foi eleito presidente da Áustria.