Pouco antes de a companhia aérea dar o embarque por encerrado, tanto eu, na janela, quanto o passageiro do corredor respiramos aliviados e dividimos o mesmo pensamento: ninguém vai ocupar o assento do meio. Cantamos vitória cedo demais, entretanto. A aeromoça avança pelo corredor e adianta-se, dando passagem a uma adorável senhora, de cabelos imaculadamente brancos, saída certamente de algum romance inglês. Ela instala-se com suavidade e elegância notáveis e um cheiro de lavanda invade as narinas e conforta o peito, porque o olfato reconhece o caminho de casa, sempre, eu penso, enquanto apresso-me a estender-lhe o cinto, que andava preso sob o assento. Ela agradece com um sorriso encantador.

Eis uma vantagem da velhice, se é que há alguma – ela diz, ajeitando a saia de lã. Os moços bonitos são sempre gentis.

Não sou mais moço, tenho vontade de responder-lhe, mas não digo nada. Para ela, talvez eu seja. Minha companheira de viagem, no vôo para Porto Alegre, está prestes a completar 80 anos. Tem olhos de um azul muito claro e muito intenso e percebe-se claramente que ali a chama não se apagou. Na verdade, o sorriso, a tranqüilidade do gesto, o perfume delicado, tudo nela me lembra o frescor daquela manhã em que Clarissa Dalloway saiu para resolver os últimos detalhes de sua festa logo mais à noite, no romance de Virginia Woolf. Vamos pelos ares, com ela a me contar histórias de outros tempos, de outras vidas e eu, certamente tocado pela lembrança, deixo correr o riacho do pensamento e vou entremeando histórias minhas com as dela, embalado pelo ruído do motor.

Ela revela-se uma deliciosa contadora de casos, com uma cultura invejável, e desfia histórias de escritores, pintores e artistas que, segundo ela, souberam transformar a adversidade em êxito e, pouco a pouco, com relatos cheios de idas e vindas, ela vai me levando por quartos e alcovas mergulhadas na penumbra, até que, saída não sei de onde, surge minha avó materna, cujas manhãs, é bem verdade, não foram frescas como para crianças numa praia. Minha avó não transformou a adversidade em êxito, mas sobreviveu a elas, porque as agruras sempre foram plurais e pródigas em seu caso. Pertencia a uma longa linhagem de mulheres que aprendem a amar os homens com quem são condescendentes. Sempre que lembro dela, como agora, nessa poltrona de avião, ouço sua voz alterar-se, buscando um agudo: se seu avô resolvesse abrir uma fábrica de chapéus, os homens passavam a nascer sem cabeça. Ele sorria, de seu canto. Nunca o ouvi dizer nada em resposta. Nunca se deu ao trabalho.

Pergunto-lhe se tem filhos. Nunca os teve. – Mas talvez eu nunca tenha encontrado o homem que me inspirasse a isso. Filhos, ou são inspirações, ou são números – ela arremata e, pela primeira vez desde que decolamos, ficamos em silêncio.

Depois do pouso, ela se despede de mim e eu, em busca da mala, acabo perdendo-a de vista. Não tive sequer tempo de me despedir e ela já se foi. Não pude agradecer pela conversa, mas secretamente agradeço por ela ter trazido minha avó de volta. Há tempos ela não saía do labirinto. Depois, o carro, mais um quarto de hotel, mais um camarim, mais uma função e, na hora dos aplausos, tenho a certeza de vê-la na platéia, mas não tenho a certeza, porque, como ela mesma me disse, o pano se fecha cedo demais.

Miguel Falabella é ator, diretor, dramaturgo e autor de novelas