Na sala de aula, um grupo joga dados, outro se diverte com peças de madeira e alguns meninos, com um balde e uma garrafa de água, encharcam o chão. Todos conversam, discutem e falam alto, mas não é hora do recreio. Trata-se de uma aula de Geometria, na qual aprendem com um animado cardápio de atividades que inclui, até, criar versos e enigmas. Do outro lado da cidade, numa escola pública da periferia de São Paulo, crianças que no terceiro ano do ensino fundamental ainda não sabiam ler nem escrever produzem um livro, singelo e primário, mas, ainda assim, um livro. Esse quadro didático tão singular resulta de um projeto educacional baseado na teoria de inteligências múltiplas, coordenado pela professora Kátia Smole, mestre em Educação pela Universidade de São Paulo e autora do livro Matemática na educação infantil – a teoria das inteligências múltiplas na prática escolar. "Esta é a primeira experiência sistematizada de aplicação na escola", informa a professora.

Desde 1983, quando Howard Gardner, psicólogo e pesquisador da Universidade de Harvard, nos EUA, criou a teoria de inteligências múltiplas e rebaixou os famosos testes de Q.I. a uma forma rasteira e danosa de classificação humana, o tema se tornou citação obrigatória em muitas escolas, mas a prática ainda é incipiente. "São conceitos que demoram a ser assimilados. É preciso mudar o olhar sobre o aluno", explica Kátia. "O cerne da teoria é a valorização das diferenças individuais. As inteligências se combinam de forma única em cada pessoa." Gardner chama de inteligência muitas outras competências além da lógico-matemática e a linguística, medidas por esses testes. Para ele, há pelo menos mais cinco: musical, espacial, corporal cinestésica, interpessoal e intrapessoal. "A corporal, que é a habilidade de usar o corpo com destreza e autocontrole, é a mais difícil de ser aceita. Mas podemos observá-la em atores, malabaristas, atletas e em cirurgiões e mecânicos", completa a professora.

Mudar o modo de olhar a criança foi o desafio lançado em duas escolas particulares e numa escola municipal de São Paulo. No tradicional Colégio Salesiano Dom Bosco, de Americana (SP), o projeto já tem seis anos e vai da pré-escola às quatro primeiras séries do ensino fundamental. Lá, as crianças da quarta série separam-se em grupos – os "cantinhos"– na sala de Matemática. Dedicam-se, cada qual, a assuntos diferentes. "Os alunos têm dificuldades variadas e diversas formas de aprender. Nos cantinhos, eles podem se aplicar mais ao que precisam e se relacionar melhor", explica a professora Simone Mesquita. "Eles vêem que seus limites e os de seus amigos podem ser alterados." Enquanto seus colegas estudavam sólidos e polígonos com objetos ou treinavam as operações com jogos, o grupo de Ricardo Takizawa, dez anos, verificava se um litro de água cabe num metro cúbico. "Não disse que cabia?", exclamou um, todo contente. "Ah, me enganei", lamenta um colega.

Na sala da segunda série, as crianças finalizam o estudo do índio pintando objetos que fizeram com argila. Foram quase dois meses estudando história indígena, sem uma só aula chata ou cansativa. Depois de discutir e escrever tudo que sabiam, eles passaram um dia numa tribo indígena em Parelheiros, região paulista de mananciais da mata atlântica. Em outro dia, montaram uma taba, pintaram-se, cantaram e dançaram feito índio. Por fim, fizeram utensílios indígenas e simularam uma lojinha. "Estimulamos o interesse e os fazemos experimentar, produzir objetos, compor música e teatralizar. Não se esquece o que se vive", diz a professora da turma, Heloísa Helena. A variedade das aulas permite que uma criança que tem inteligência musical aprenda tanto quanto aquela que tem facilidade linguística ao mesmo tempo que treina com o grupo todo várias competências. O resultado é um aprendizado multidisciplinar: a História não abre mão do Português, nem da Arte nem da Música. Nem mesmo da Matemática. Os alunos fizeram gráficos com os dados sobre os índios. O método de Gardner fez a reprovação na escola cair para zero e a recuperação em Matemática e Português baixar de 40 casos para menos de cinco num grupo de 200.

 

Mais seguros No Emilie de Villeneuve, colégio católico de São Paulo, o projeto foi implantado há três anos, também até a quarta série. "As crianças são seduzidas pelo processo da aprendizagem", diz a professora Cristiane Rodrigues Chica, da terceira série. O planejamento é feito em conjunto com os alunos. Eles comparam o que sabem, discutem os erros e acertos, escrevem sobre eles e partem para a criação. "Isto é pensar sobre o pensar", diz a professora. As classes trocam enigmas e fazem poemas nas aulas de Matemática. Depois avaliam a produção "literária" e deixam suas opiniões escritas num quadro de recados para a outra turma. "Eles se acostumam a ter uma visão crítica, a pensar sobre a produção do outro e a própria sem que isso lhes prejudique a auto-estima", explica Cristiane. "Não gosto muito de Português, mas adoro fazer poemas e enigmas em Matemática", conta Raphael Moura Curralo, nove anos. "Eu adoro fazer poesia", diz Elisa Gragnani, oito anos. "A gente se diverte e aprende coisas novas", completa Bruna Paulon, oito anos.

Na Escola Municipal de Ensino Fundamental Dr. João Pedro de Carvalho Neto, no bairro de Capão Redondo, a aplicação da teoria de Gardner enfrenta a realidade dura da violência e da carência material e afetiva. O contraste é gritante, mas os resultados são animadores. De uma classe de 38 alunos da terceira série que começaram o ano sem saber ler e escrever, em junho apenas sete não apresentavam grandes progressos. "É um desafio. O principal é resgatar a auto-estima desses meninos, que depois de três anos na escola já estavam fadados ao descaso", conta Maria José de Meneses, 34 anos, professora da rede pública há dez, que também aplica o trabalho diversificado para tentar equiparar o aprendizado. Outros graves problemas para a professora, como a indisciplina e a agressividade, melhoraram bastante com o envolvimento dos alunos no planejamento da aula. A partir de um plano diário traçado por ela, os alunos organizam o que vão estudar, com uma atividade prazerosa no final. "Quando falta tempo para chegar à última etapa, eles discutem por quê. E concluem: "Ah, nós falamos demais. A professora teve que interromper a aula." Eles mesmos chamam a atenção um do outro", conta Maria José. Descobrir que podiam criar e produzir melhorou-lhes a auto-estima. Eles foram convidados pela professora a inventar uma história coletiva, oral, base para o livro que eles ilustraram e que mostram com orgulho.

Essas são apenas algumas das possibilidades abertas pela concepção de inteligência de Gardner. O diferencial do método é que cada ação ou recurso é intencional. "Não nos limitamos a usar histórias e dramatização para ensinar. Planejamos e replanejamos exaustivamente e avaliamos continuamente cada criança. A eficiência do método requer engajamento", explica Kátia Smole. As crianças se fortalecem ao sentir que fazem parte do aprendizado e que podem cumprir as metas que estabelecem. A tolerância com as diferenças reduz a agressividade e o espírito de competição. "Ao respeitarmos cada criança pelo que ela é, sem estigmas, privilegiamos a diversidade. Ela vê que tem seu lugar no mundo, aprende a se valorizar e descobre o outro." Isso é lidar bem com as diferenças.