Com passos velozes de maratonista, Drauzio Varella, 56 anos, atravessa os sete quarteirões que separam seu apartamento, na aristocrática avenida Higienópolis, da estação de metrô Santa Cecília, no centro de São Paulo. Em menos de meia hora, com uma baldeação, deixa para trás seu mundo organizado e rigoroso de médico consagrado para mergulhar num dos porões do Brasil. Há dez anos, regularmente, ele passa uma tarde por semana na enfermaria da Casa de Detenção do Carandiru. Por cinco ou seis horas, entre as paredes infiltradas daquele labirinto de sete mil habitantes, ele dedica o conhecimento acumulado em 32 anos de medicina a alguns dos homens mais violentos e mais desvalidos do mundo. Após dois anos de trabalho e muitas versões, seu relato sobre esse convívio chegou esta semana às livrarias com o título de Estação Carandiru (Cia. das Letras, 297 págs., R$ 26). Na contracapa, uma breve, mas exata explicação: "A experiência de um médico no maior presídio do País."

"Tivemos de mostrar que não seria mais uma reportagem de denúncia sobre o sistema penal", conta o editor Luís Schwarcz, responsável por algumas das modificações que o autor fez no texto. O primeiro livro de Drauzio Varella é um depoimento extremamente pessoal, seco, mas terno, sobre a gente e a cultura da cadeia, sem traço de maniqueísmo. Consegue enxergar igualmente a graça e a desgraça de seus personagens. Escrever, segundo explica, "foi uma forma de dar outra dimensão a uma experiência particular." Uma edição inicial de dez mil exemplares (em vez dos três mil habituais) indica que a dimensão vai ser maior do que ele previa. Mas é sempre assim, na sua vida.

Branco Um garoto de classe média criado no Brás, bairro de imigrantes pobres, órfão de mãe aos quatro anos, ele sempre disse que ia ser médico. O sonho só foi ameaçado uma vez, quando prestou vestibular e, no segundo dia de exame, travou de puro stress. "Ele pousou a caneta na carteira e não conseguia mais acertar uma questão", conta a irmã mais velha, Maria Helena. Um ano depois, foi aprovado na USP em segundo lugar. Hoje, mais do que médico de sucesso, ele representa uma referência obrigatória quando se fala de saúde e está sempre envolvido em grandes projetos. A cada dois meses, viaja para Manaus, onde acompanha uma pesquisa da flora amazônica. E desde o começo deste ano, além da clínica particular, do Carandiru e do programa semanal de televisão Drauzio Varella Pergunta, interna-se às vezes por 10 a 12 horas num estúdio de gravação da produtora Made to Create, em São Paulo. Ele é o âncora do programa batizado de O que é que eu faço doutor?, um ambicioso projeto do Ministério da Saúde a ser exibido a partir deste mês por todas as televisões educativas do País. Na pauta, automedicação, tabagismo, dengue, pré-natal e Aids entre outros temas. A idéia é que informação sobre saúde reduz internações e, por consequência, gastos. "Ele não se limita a ler os roteiros", diz a coordenadora da produção, Marta Maia. "Ouve especialistas, se informa e negocia mudanças." Uma delas foi aumentar o tempo dedicado ao tabagismo. Outra foi avisar que remédios para o fígado, mania nacional, são inúteis. O ministro José Serra assistiu às primeiras chamadas e elogiou: "O Drauzio é um comunicador invejável. Ele tem a capacidade de explicar de maneira simples e direta as questões mais complexas."

Essa clareza didática foi aperfeiçoada em sala de aula, nos anos que passou enfiando na cabeça de adolescentes as doses cavalares de Química exigidas pelo vestibular de Medicina. Com um grupo de professores, ele fundou em São Paulo, em 1965, um cursinho que viria a se tornar o imenso complexo educacional Objetivo-Unip, hoje com 400 mil alunos em todo o País. "Foi o Drauzio quem propôs o nome Objetivo", recorda seu ex-sócio João Carlos Di Gênio. "Quando o curso cresceu demais, ele propôs: eu fico na Medicina e você vai me ajudando", relata o empresário, num resumo brincalhão de sua parceria com o médico em projetos como o programa de televisão, exibido no Canal Universitário, na TV Senado e na CBI, e a pesquisa da flora amazônica. E provoca: "Pena que, depois do sucesso, ele anda se achando sexy e bonito."

O comentário diverte Drauzio, que morre de medo de elogio e da beatificação que ronda os envolvidos em causas humanitárias. Sem medo de mexer com uma doença identificada com sexo e drogas, ele previu antes dos outros o impacto da Aids no Brasil e pôs a boca no mundo. Estava em Nova York, em 1983, fazendo um estágio no Memorial Hospital, e viu uma experiência de uso de Interferon em sarcoma de Karposi, câncer de pele comum em doentes de Aids, que começava a se multiplicar. "Fiquei fascinado. A doença envolvia as duas coisas que eu conhecia melhor: imunologia e câncer", recorda. Ele voltou ao Brasil aterrorizado. Fez algumas gestões junto à Secretaria de Saúde de São Paulo para que se selecionasse melhor os doadores de sangue. Fracassou. Procurou o Ministério da Saúde, em pleno governo Figueiredo. "Me senti um perfeito imbecil, falando com um chefe de gabinete. Entediado, ele me disse que as urgências do governo àquela altura eram esquistossomose e malária, e não uma doença de homossexuais nova-iorquinos." Conseguiu finalmente registrar seu alerta numa página do jornal O Estado de S.Paulo, ainda em 1983.

 

Revolução Aos poucos, foram aparecendo os doentes. "E não havia quase nada a fazer", ele lembra. "Em 1995, com a chegada dos novos medicamentos é que o quadro mudou. Nos Estados Unidos, investiu-se US$ 1,7 bilhão em pesquisa só no ano de 1997, o sistema imunológico foi dissecado e produziu-se o maior avanço do século, na Medicina", festeja. "Hoje, com tratamento, dificilmente se perde um paciente de Aids."

Drauzio dedica-se, agora, apenas à oncologia, sua grande paixão. Uma equipe com mais quatro médicos permite que ele se ausente sem desamparar os doentes. Seu parceiro mais antigo é o oncologista Narciso Escaleira, 54 anos, ex-professor de Biologia nos primórdios do Objetivo, que Drauzio levou para o Departamento de Imunologia do Hospital do Câncer, em São Paulo em l974. Os pneumologistas e especialistas em UTI Daniel Deheinzelin, 38 anos, e Ronaldo Kairalla, 39, atuam há dez anos na parte de clínica geral e acompanhamento hospitalar. O mais recente membro da equipe é o cirurgião Rafael Possik.

O tom brincalhão é um traço dominante em Drauzio, como lembra a atriz Regina Braga, 51 anos, sua mulher há 18. Regina conheceu o marido em 1981 ao dar um curso de teatro no Museu de Arte Moderna. O curso tinha 25 vagas e, na primeira aula, apareceram 24 alunos. O grupo já estava mergulhado num exercício silencioso quando um rapaz magro e alto bateu na porta e, de má vontade, a professora o deixou entrar. Regina tinha se separado do primeiro marido. Drauzio estava recém-desquitado e queria encher o tempo com uma atividade nova. Encontrou bem mais do que esperava. Como ele jamais implicou com suas ausências para turnês e gravações, um dia ouviu da mulher um elogio inquietante: "Você é tão legal que parece que não existe." Mas o afago teve troco: "Eu sou mais apaixonado por você que pela cancerologia."

Regina, que se tornou na última década uma atriz top e uma produtora requintada de suas próprias peças, diz que aprendeu com o marido a mergulhar mais fundo no trabalho. "Ele estuda, se ocupa o tempo todo e faz isso com naturalidade. Passei também a aproveitar os períodos de indecisão para estudar mais." É isso que ele faz, por exemplo, nas salas de espera de aeroportos e vôos diurnos ou até, por exemplo, na proa de um saveiro, em pleno mar, enquanto os amigos jogam conversa fora. No tempo elástico de Drauzio cabem frequentes almoços com as filhas, Mariana, 26 anos, que estuda Ciências Sociais, e Letícia, 24, estudante de Medicina. Cabem também fins de semana no flat do Rio de Janeiro, filmes, shows, peças de teatro e festas onde ele nunca faz cara de sono. E cabe, finalmente, a corrida diária, treino para a maratona de Nova York, de que participa há seis anos. "Quando fui chegando aos 50, me deu aquela crise, o medo da velhice e eu resolvi correr a maratona. Seu melhor tempo nos 42 quilômetros da prova foi em 1994: 3 horas e 38 minutos. A performance não progrediu muito, mas o treino prossegue, embora pouco ortodoxo. Quando não pode ir ao parque do Ibirapuera, sobe os 16 andares do prédio onde mora. "Subo pela escada e desço pelo elevador de serviço, alongando." Detalhe: no walkman – quem poderia supor? – a fita é a história da Física no século XX.

Drauzio consome informação em altas doses. Lê a edição mensal do American Journal of Clinical Oncology e os semanais New England Journal of Medicine e Science, sua predileta. Todos os anos, vai ao congresso da American Society of Clinical Oncology e ao encontro do pesquisador americano Robert Gallo em Baltimore, onde falou sobre o trabalho do Carandiru.

Ele visitou o presídio pela primeira vez em 1989. Levou folhetos da Organização Mundial da Saúde, sobre Aids. No dia seguinte, soube pelo pessoal da limpeza que 95% do material tinha sido jogado no lixo. Nasceu dessa descoberta o gibi Vira-lata, calcado na velha pornografia de Carlos Zéfiro. O herói de O vira-lata, criado por Paulo Garfunkel e Líbero Malavoglia, é um sedutor que jamais deixa de usar camisinha. A queda nos índices de infecção no Carandiru (de 17,3% em 1990 para 13,7% em 1994) deve-se sobretudo à troca das drogas injetáveis pelo crack, mas o gibi é uma fonte preciosa de informação.

Persona grata A visita semanal nasceu de consultas apressadas ao fim das palestras que deu durante dois anos sobre Aids. O agente carcerário Valdemar Gonçalves, 51 anos, foi fundamental para o sucesso do trabalho. Um hábil diplomata, cujos campeonatos e festivais de música aliviam a pressão, realiza façanhas como levar 300 homens jurados de morte até o pátio, para banho (frio) e aspersão com remédio contra sarna. "O pessoal entende tão bem a importância do doutor que hoje ele pode andar sozinho em qualquer pavilhão."

"O Carandiru mudou minha relação com a Medicina", afirma Drauzio. "Sempre trabalhei amparado pelos melhores recursos. Lá um hemograma pode levar meses e uma tomografia é impensável. Eu tenho o meu olhar e a minha intuição. A sensação de poder é o grande prêmio que a enfermaria esquálida lhe proporciona. "O paciente que vai ao meu consultório tem pelo menos outras dez opções. Os presos são mais desprotegidos e providências simples podem significar a vida", explica. Como virar as costas?

 

O levante
Trechos de Estação Carandiru

Naquela tarde, no campo do nove, enfrentavam-se o Furacão 2000 e o Burgo Paulista na disputa do campeonato interno do pavilhão. Nos andares, os presos arrumavam os xadrezes. Tudo calmo, como imaginava o diretor.

No decorrer do jogo, inesperadamente, o Barba brigou com o Coelho na rua Dez do segundo andar do Pavilhão, um armado de faca, o outro com um pedaço de pau. Briga de rotina, não fossem as terríveis consequências. (…) Como Coelho e Barba pertenciam a duas facções rivais das zonas Norte e Sul, respectivamente, que há tempos se estranhavam na rotina do pavilhão, no momento da briga os companheiros alinharam-se em torno dos antagonistas e trocaram ameaças de morte. Na confusão que se estabeleceu, o pessoal do campo subiu para o segundo andar e o confronto adquiriu proporções mais sérias.

(…) Quando começou o corre-corre e os gritos de vai morrer, mesmo quem não tinha nada a ver com os acontecimentos acautelou-se. Zelito, um negro alto e forte que mais tarde encontrei na enfermaria cego dos dois olhos pelo gás lacrimogêneo, tirou a faca do esconderijo:

– No meio daquela zica podia sobrar para a minha pessoa.

(…) Excluídos os mais sensatos, que se trancaram nos xadrezes, os outros armaram um berreiro infernal, faca, pau, cano de ferro e quebra-quebra, correndo descontrolados, feito um estouro da boiada. (…) Naquele momento, Santão, um rapaz sem a orelha direita que montava o equipamento nas palestras no cinema, cumprindo dezoito anos de uma pena que acabaria em fevereiro do ano seguinte, olhou pela janela do xadrez e viu o pelotão de choque enfileirado na porta de fora do pavilhão, de máscara ninja cobrindo o rosto, escudo, metralhadora e a cachorrada.

(…) O diretor ainda tentou convencê-los a deixá-lo dialogar com os prisioneiros. De fato, chegou até a porta que dá acesso ao pátio externo do Nove, mas, antes que pudesse entrar, a PM em formação militar atrás dele disparou portão adentro. Só podem contar o que se passou daí em diante, a PM, os presos e Deus. Ouvi apenas os presos.

 

Em busca dos poderes da floresta

O projeto de pesquisa da flora amazônica nasceu há quatro anos e consiste na coleta, identificação e catalogação de espécies vegetais para experimentar sua ação sobre células tumorais e sobre bactérias resistentes, coletadas em hospitais de São Paulo. O projeto, que tem a participação do American Cancer Institute e do New York Bothanical Garden, custou à Universidade Paulista (Unip), do complexo Objetivo, um investimento de US$ 4 milhões. E a Drauzio Varella dois anos de peregrinação pelos órgãos do governo em busca de autorização. "A burocracia pensa que os cientistas estrangeiros vêm aqui, extraem células vegetais com uma caneta Bic e conseguem cloná-las em laboratório!", ele descreve. "Enquanto isso, acontecem absurdos como um francês patentear o urucum", critica. Enfim legalizado, o projeto, ancorado na infra-estrutura da escola da Natureza, um conjunto de instalações e barco-laboratório que a Unip mantém perto de Manaus, é ponto de peregrinação de grandes estrelas da ciência, como Robert Gallo, um dos descobridores do vírus da Aids. "Num hectare de floresta, chegam-se a encontrar até 280 espécies. Em alguns parques americanos, elas não passam de seis por hectare", maravilha-se Drauzio. Os extratos de 600 espécies já estão sendo testados no laboratório, em São Paulo. Mas o importante, segundo Drauzio, é que cresça a partir daí um núcleo de pesquisa. "Temos essa riqueza, precisamos aproveitar."

 

"Ele toca na gente"

As visitas começam pela farmácia. Faltam medicamentos básicos, como penicilina, que daria conta de 80% das infecções, e aspirina. Sobra vitamina C e numa das visitas havia caixas de creme vaginal. Felizmente, os medicamentos de Aids nunca faltam. Em seguida ele sobe à enfermaria, no Pavilhão 4. Drauzio detecta no chão guimbas de cigarro e manda varrer. "Precisamos de higiene para trabalhar." Além dos internados, vêm doentes de outros pavilhões. "O dr. Drauzio encosta a mão na gente, examina de perto", diz o auxiliar de enfermagem R., 23 anos, condenado a três anos por tráfico. "Os outros médicos falam de longe." Paulo Xavier, o Paulão, enfermeiro do Hospital Sírio Libanês que há um ano é voluntário no Carandiru, preenche os prontuários. As palavras tosse, suadeira, vômito, dor e coceira se repetem em várias vozes. Na do médico, as repetições são a pergunta: "Tomou baque na veia?" e a explicação aos tuberculosos: "A única coisa que você tem que saber é que a pílula vermelha tem que ser tomada em jejum." Ele ausculta as costas tatuadas de um rapaz e pergunta o tamanho da pena. "Dezoito, doutor." Ele aperta os gânglios do pescoço do paciente. "Assassinato?" O rapaz reage. "Nunca matei ninguém, doutor." Drauzio brinca: "Aqui é assim. O cara vai levar a mãe à missa e vai preso." Gargalhadas. Um preso com tuberculose faz um pedido: "Tenho pânico à noite. Pede pra deixarem a porta da cela destrancada, doutor." Ele pega o bloco. "Eu peço, mas você não vai me deixar numa situação difícil, certo?" Tina, a bichinha, tem medo de fazer o teste de HIV. Drauzio a encoraja: "Você faz, se der positivo eu monto o tratamento pra você, combinado?" Ela aceita. "Combinado, doutor."