09/06/1999 - 10:00
Era uma tarde chuvosa e fria quando o escritor Ernest Hemingway entrou em um café no Peace Saint-Michel, em Paris. Tomou um café, depois rum. Entre um gole e outro, escreveu um conto e, para preencher a sensação de vazio ao fim de tanto esforço intelectual, tomou uma decisão extremamente prazerosa, descrita em seu livro Paris é uma festa: "Comi as ostras, que possuíam forte gosto de mar e um leve travo metálico que o vinho branco lavava, deixando somente o gosto de mar e a suculenta textura; à medida que ia sorvendo o líquido frio de cada concha e o fazia descer acompanhado do estimulante sabor do vinho, o sentimento do vazio me foi abandonando e me vi de novo feliz, cheio de planos."
Feinha e de aspecto nem um pouco encantador, a ostra deve muito de seu destaque às referências literárias. Acredita-se que o conquistador Casanova mantinha seu furor sexual graças ao hábito de devorar uma dúzia de ostras no café da manhã. A popularidade do personagem pode ter contribuído para manter viva até hoje a lenda do poder afrodisíaco desse molusco. Ainda que menos efusivo quanto aos resultados carnais obtidos, Hemingway conseguiu traduzir os benefícios que a ostra lhe proporcionou ao espírito. O que mais se esperar desse bicho contido entre duas conchas que alimenta o corpo e a alma?
A comunidade de Mandira, em Cananéia, litoral sul de São Paulo, trabalha para que a ostra agregue outro valor, o de transformadora social. As 17 famílias que vivem nesse bairro sobrevivem da extração do molusco do mangue há 30 anos. Em especial, desde que o governo estabeleceu que a região coberta com mata atlântica se tornaria área de proteção ambiental. Proibidos de cultivar suas roças, os nativos se voltaram para o mar e apostaram na força da ostra. Logo apareceram atravessadores dispostos a vender o produto na capital. E assim, até recentemente de maré em maré, os pescadores dependiam desses intermediários para ganhar a média de R$ 100 por mês.
Foi preciso o empenho de várias ONGs, da Fundação Florestal, do Instituto de Pesca e da Fundação Margaret Mee, além do incentivo da iniciativa privada, como a Shell, para que o governo dirigisse sua atenção para o lugar. O primeiro passo foi a organização de vários bancos de engorda, telas onde as ostras são mantidas até alcançarem o tamanho comercial de, no mínimo, oito centímetros. Com isso, a comunidade dispõe de um estoque o ano inteiro, inclusive no período de reprodução, quando a extração é proibida. Além disso, a recente construção com recursos estaduais de uma depuradora – tanque em que os moluscos repousam em água tratada para se livrar de impurezas – permitiu que a ostra de Cananéia ganhasse o selo do Ministério da Agricultura. Como a boa procedência no caso das ostras funciona quase como título de nobreza, os extratores passam a trabalhar com um produto de maior aceitação comercial.
É uma revolução para a comunidade de Mandira remanescente de um quilombo e para os demais pescadores da região. Organizados em uma cooperativa, mais de 60 extratores vão se beneficiar da depuradora. Com uma promessa de produção mensal de 60 mil dúzias, as famílias poderão receber em média até três salários mínimos. "A nossa vida vai melhorar", acredita Francisco de Salles Coutinho, presidente da cooperativa. A estação de tratamento vai impulsionar ainda a criação da Reserva Extrativista de Mandira. Trata-se da delimitação de uma área do mangue para garantir a manutenção da espécie e também restringir a ação de outros extratores na região. Com isso, as ostras ganhariam também um selo verde, mais um aspecto que melhora o marketing do molusco. "A idéia é aliar justiça social e proteção ambiental", diz Renato Salles, da Fundação Florestal.
Paladar de Hemingway A iniciativa em Cananéia vai beneficiar, e muito, o consumidor. Ainda com o paladar destreinado, tanto pelo preço restritivo quanto pela pequena oferta do produto, o brasileiro não tem o costume de comer ostras. Um molusco de boa procedência pode incentivar por aqui o despertar da sensibilidade descritiva de Hemingway. A produção de ostras no Brasil é pífia se comparada aos demais países. Quem começou a sacudir o mercado foi Santa Catarina, que hoje responde pelo maior volume de ostras no mercado. São 280 mil dúzias por ano. Em 1983 a Universidade Federal do Estado desenvolveu um projeto de cultivo da ostra do Pacífico, com sementes importadas do Japão. "A idéia era criar uma alternativa para os pescadores artesanais", lembra Carlos Rogério Poli, consultor de aquicultura e idealizador do projeto. O pioneirismo de Santa Catarina garantiu-lhe a fama da fornecedora da melhor ostra do País. Agora é Cananéia quem vai disputar o título. O proprietário do restaurante Amadeus, em São Paulo, Tadeu Masano, mantém um funcionário em Florianópolis que lhe assegura uma remessa diária do produto. Foi a forma que encontrou para resguardar a tradição de seu bar de ostras, criado há 12 anos. "Hoje, as ostras catarinenses têm um apelo comercial maior. Pode ser que isso mude. Afinal, o molusco só precisa ser fresco e de boa procedência", analisa.
Como saber onde nasceu o bicho é tão importante, vale uma pequena introdução para quem vai começar a sugar essas conchas rasas. As ostras de Cananéia são nativas do mangue, crescendo num ambiente que mistura a água doce dos rios e a água salgada do mar. A riqueza de plânctons nessas regiões permite que o molusco fique superalimentado e assim tenha um sabor mais acentuado. No litoral de Santa Catarina, as ostras são cultivadas – criadas – em áreas reservadas no próprio oceano. Esse procedimento faz com que sua carne adquira um gosto mais delicado. Influenciado pela tradição européia, o público no Brasil prefere comê-las cruas. No Japão, elas são servidas gratinadas, em sopas e à milanesa. Aí a questão é subjetiva. Em Mandira, os extratores nem sequer imaginam a hipótese de devorá-las vivas. "Criei nove filhos com ostra e nunca comi esse bicho sem cozinhar", garante Frederico Mandira, 68 anos, o morador mais antigo do bairro.
Por seu aspecto refrescante, a ostra parece mais convidativa no verão. Os degustadores garantem, contudo, que o molusco torna-se mais saboroso no inverno. A razão está no período de reprodução que se dá no início do ano, alterando seu sabor. (Uma curiosidade: este molusco é transexual, muda de sexo de acordo com o clima.) Qualquer que seja a temperatura, no entanto, a ostra ganha realce se acompanhada de um bom vinho. A presença de iodo em sua carne destrói o potencial dos tintos. Por isso, a melhor escolha está em um champanhe ou um branco encorpado, como um Chablis. Boas na mesa, as ostras também têm sua contribuição a dar na cama. Ricas em zinco, mineral fundamental para a produção dos espermatozóides, elas podem ser aliadas na dieta masculina. Casanova que o diga.
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Cor A carne pode ser mais ou menos cinza sem que isso interfira no sabor. |