Depois de muito insistir em antecipar o cronograma em dois anos e ameaçar com a criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) sem o Brasil, os Estados Unidos repentinamente cederam. A resistência ao acordo dentro do próprio Congresso americano dificultava ao presidente George W. Bush conseguir delegação de autoridade para negociar a tempo de viabilizar a antecipação. Além disso, faria pouco sentido para os EUA negociar sem o Mercosul, que reúne seus principais parceiros potenciais na América do Sul. Assim, os ministros de 34 países das Américas que se reuniram em Buenos Aires nesta semana concordaram em definir os critérios de negociação até 1º de abril de 2002, encerrar as negociações em 1º de janeiro de 2005 e iniciar a implementação um ano depois. Em princípio, isso significa que até 2015 ou 2020, 85% das tarifas de importação entre os países-membros – inclusive entre os EUA e o Brasil – estarão zeradas.

Isso não torna a Alca inevitável. No Brasil, o debate sobre sua conveniência para os interesses nacionais ainda está começando. Para o atual negociador do Brasil, Celso Lafer, só haverá interesse em prosseguir se as negociações se mostrarem equilibradas. Há organizações, como a CUT, defendendo um plebiscito sobre o assunto. A discussão estará presente na campanha eleitoral e a decisão final estará nas mãos do sucessor de Fernando Henrique.

Não está claro se a Alca interessa ao Brasil. Oficialmente, as tarifas dos EUA são quase sempre menores que 5%. Para os exportadores brasileiros, tanto faz se elas continuarem existindo ou não: as flutuações do câmbio fazem mais diferença. O problema está nas sobretaxas especiais, que hoje elevam para 45,6%, na prática, a média tarifária dos 15 principais produtos brasileiros e inviabilizam totalmente a exportação de muitos outros. Sem falar nas cotas de importação e programas de subsídios. Só na agricultura, os subsídios diretos chegam a US$ 28 bilhões.

Troca desigual – A lista de produtos agroindustriais protegidos nos EUA inclui açúcar, álcool, café torrado, doces, chocolates, laticínios, suco de laranja, carne bovina, amendoim e derivados, algodão e tabaco. O suco de laranja brasileiro sofre uma taxação de US$ 418,20 por tonelada, 44,7% sobre o preço de exportação. A tarifa oficial sobre a importação de álcool brasileiro é de 2,5%, mas a sobretaxa é de US$ 0,1427 por litro, quase 100% sobre o preço. As importações de açúcar brasileiro estão limitadas desde 1982 por um sistema de cotas, acima das quais se aplica uma tarifa proibitiva de 236%. No caso do tabaco, a sobretaxa é de 350%. Os americanos criam barreiras fitossanitárias ainda mais severas que as européias a vários desses produtos. Apesar disso, querem que os membros da Alca deixem de comprar produtos de países que subsidiam as exportações – como os da União Européia – fazendo da América Latina seu mercado cativo.

No caso da siderurgia, desde dezembro de 1998 sobretaxas proibitivas fecham as portas dos EUA aos produtos brasileiros, salvo semi-acabados destinados a laminadoras americanas. Em julho de 1999, os EUA aceitaram um acordo com o Brasil autorizando a entrada de uma quantidade limitada de laminados a quente no mercado americano, mas o lobby da siderurgia americana impediu que entrasse em vigor. O governo americano não abre mão desses mecanismos nem em sonho; o Congresso, muito menos. Pelo contrário, o governo Bush já se dispôs a reforçar ainda mais a proteção à siderurgia de seu país, proibindo as importações de aço por mais três anos.

Enquanto isso, o Brasil aplica uma tarifa média de 14,3% aos 15 principais produtos de exportação dos Estados Unidos. Eliminar essas tarifas como prevê a Alca abalaria a indústria brasileira, principalmente a dos setores com mais tecnologia agregada, como veículos, bens de capital, informática e equipamentos de telecomunicações. Mesmo os que fizeram grandes investimentos continuam longe da escala e da produtividade da América do Norte. A perspectiva de abertura pode inibir novos investimentos e até liquidar grande parte desses setores.

Boas e más notícias – Segundo uma projeção do Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais (Ipea), com a Alca o Brasil importaria mais 15,5%, mas as exportações cresceriam 6,7%. Essa situação resultaria, de acordo com cálculos feitos por ISTOÉ, num aumento de US$ 5 bilhões anuais sobre um déficit comercial já problemático. Equilibrá-lo exigiria não só um salto de produtividade, como uma brutal redução de salários, como no México, onde eles caíram 23% desde a criação do Nafta (tratado de livre comércio da América do Norte). Para resumir, se a Alca for concretizada nos moldes desejados pelos EUA, a boa notícia será que você poderá comprar produtos americanos sem pagar tarifas de importação. A má é que seu salário poderá cair mais do que os preços desses produtos. Para o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, o projeto da Alca consiste apenas em capturar para os EUA o pedaço do mercado representado pelos 30% da população latino-americana de renda mais alta. Os demais correm o risco de ficar ainda mais marginalizados.

As decisões de Buenos Aires ainda terão de ser confirmadas pelo encontro dos chefes de Estado na Cúpula das Américas, a ser realizada na cidade canadense de Québec, entre 20 e 22 de abril. Ali, vão ouvir queixas também do outro lado: canadenses e americanos se manifestarão contra a ameaça aos seus padrões trabalhistas e ambientais representada pela Alca. A polícia canadense preparou 600 celas para prender manifestantes. Para proteger a área onde se realizará a Cúpula, guardada por cinco mil a oito mil policiais, está dividindo a cidade com uma espécie de “muro de Berlim” de arame e concreto, com 3,8 km de extensão e mais de 3 m de altura.