18/04/2001 - 10:00
O que é felicidade? O equilíbrio da mente? A capacidade de lidar com as rasteiras que a vida dá, um estado de espírito ou algo escondido dentro de cada um? Ninguém sabe ao certo defini-la, muito menos qual a receita para alcançá-la. Desde que o mundo é mundo, poetas, filósofos, religiosos e mortais comuns tentam realizar essa proeza. Mas parece que ela está sempre escapando e que o vizinho sabe, indiscutivelmente, ser mais feliz. Apesar da eteriedade do tema, a ciência também resolveu se arriscar nessa busca e acredita ter conseguido boas pistas. Liderados por Kennon Sheldon, PhD em psicologia, pesquisadores da Universidade de Missouri, Columbia (EUA), ouviram vários grupos de universitários americanos e um de sul-coreanos e delinearam as necessidades psicológicas essenciais ao ser humano. Seriam elas: autonomia, competência, proximidade com outras pessoas e amor a si mesmo. Publicado na edição de fevereiro do Journal of Personality and Social Psychology, da American Psychological Association (APA), o estudo levanta uma questão instigante: seria, então, possível ensinar a ser feliz? Sheldon acha que sim. “Identificadas, essas necessidades podem ser realçadas no desenvolvimento pessoal, assim como as necessidades orgânicas de uma planta podem ser priorizadas para melhorar o seu desenvolvimento”, afirma Sheldon. Simples assim.
No mundo consumista e de alegrias fugazes em que vivemos, o resultado da pesquisa não poderia deixar de causar certa estranheza. Afinal, instados a mencionar acontecimentos recentes que lhes trouxeram felicidade, os estudantes elegeram ocasiões que não tinham relação direta com dinheiro, fama e beleza. Estaria aí a prova científica de ditado populares como “dinheiro não traz felicidade” ou “beleza não põe mesa”, diriam os mais afoitos. A pesquisa torna evidente que os efeitos externos e concretos de uma ação provocam menos contentamento do que os sentimentos que ela desencadeia. Também indica que a capacidade de atingir o estado de graça ou felicidade suprema estaria mais ligada a um jeito especial ou disposição de observar e interpretar o mundo. Pessoas com essa qualidade costumam enxergar o mundo com lentes cor-de-rosa.
A juíza carioca Denise Frossard diz que, quando sua faxineira chega, a casa se ilumina. Delma Felippe, 52 anos, está sempre de bem com a vida, apesar de todas as limitações financeiras que enfrentou e enfrenta. Ela se separou do primeiro marido com três filhos pequenos para criar. Casou-se outra vez, teve outro filho e enviuvou depois de 27 anos de convívio. Ficou de novo responsável pela família – acrescida de sete netos. “Não consigo ficar triste, tô sempre rindo.” Delma não sabe explicar o que tem de diferente, apenas vive a vida. Seu alto-astral é valorizadíssimo pelas patroas. “Delminha não tem rugas na alma. Eu a observo e tiro lições da capacidade que ela tem de descomplicar”, confessa Denise.
Superação – Pessoas como Delma cutucam quem está por perto. Entre uma pontinha de inveja e certa dose de vergonha pelos resmungos de cada dia, surge a pergunta: o que ela tem que eu não tenho? Quanto mais graves os acontecimentos que marcam a vida dos bem-humorados, mais salta aos olhos a capacidade de superação. Quem vê Alcino José da Silva Neto, 31 anos, pegando onda na praia do Guarujá, em São Paulo, com uma perna só duvida dos próprios olhos. Alcino, também conhecido como Pirata, sofreu um acidente de moto aos 15 anos. “Era preciso cortar parte da perna e fazer muita fisioterapia para recuperar a outra parte. Preferi cortar logo até a metade da coxa. Meu pai sofreu mais do que eu”, conta Alcino. A decisão radical do adolescente surpreendeu a todos. Mas essa não era a sua primeira grande perda nem a última. A mãe morreu quando ele tinha três anos. Aos 12 anos, foi a vez da avó que o criou e, um ano depois do acidente, do pai. Em terra, Alcino usa uma prótese moderna muito diferente da de madeira rústica, que lhe valeu o apelido. Sofreu muito, mas não deixou suas paixões. Há cinco anos, abriu uma escola infantil de surfe, que também atende crianças carentes (www.pirataguaruja.com.br). Seu lema é “viva a onda certa”. Com alguns patrocínios, já mostrou sua técnica no Havaí, no México, na Califórnia e na Indonésia. “Faço demonstrações nos campeonatos mundiais para que um dia pessoas como eu também possam participar das disputas. Mostro que qualquer sonho é possível”, diz, enfático.
Mais confortável seria pensar que quem vive de bem com a vida é um privilegiado, capaz de produzir mais neurotransmissores como a endorfina e a dopamina. Os neurotransmissores são responsáveis pela circulação de informação entre os neurônios e essas e outras “minas” são tidas como “as substâncias do prazer”. Aos deprimidos, era só garantir antidepressivos – pílulas que reequilibram a química cerebral – e pronto. Seria uma mão na roda. A religião e a filosofia estariam ameaçadas, mas o maior prejuízo seria mesmo de analistas e psicólogos. No entanto, neurologistas e psiquiatras são os primeiros a negar a possibilidade. “Não há pesquisas que comprovem isso. É possível produzir prazer no laboratório, basta colocar eletrodos em determinada área do cérebro, mas não felicidade, emoção muito elaborada”, explica Raul Marino Júnior, professor titular de neurocirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Emoções – Também para o psiquiatra Táki Cordás, autor de Distimia – do mau humor ao mal do humor, a questão vai além da matemática básica da rede neural. “O que determina a capacidade de sentir prazer e bem-estar é a personalidade, formada por temperamento, meio social, educação e genética. Um oriental, por exemplo, sofre de forma diferente de um latino. Introvertidos tendem a exteriorizar menos as emoções, podendo parecer, a olhos alheios, que sofrem menos”, exemplifica o psiquiatra. “Pessoas ansiosas tendem a antecipar resultados negativos e a ter uma visão ameaçadora da vida”, arremata. Por conseguinte, uma criança criada num ambiente assim pode sofrer mais.
O inverso também vale. Uma família otimista tende a passar para a frente esse comportamento. Aos 26 anos, Maximilliano Barbosa atesta isso. Ele diz que seu bom humor é herança da mãe. “Ela sempre mostrou a alegria da batalha”, conta. Em seu caso, o bom humor ajudou muito profissionalmente. Por alguns anos, foi professor de natação e todo mundo queria ter aula com o Tio Max. Há um ano e meio, em busca de segurança financeira, tentou emprego na Atento, empresa de atendimento telefônico. “Achei que eles poderiam não aceitar um negro de cabelo rastafari, mas arrisquei”, diz. Ele não só conseguiu a vaga de operador, como foi promovido duas vezes em um ano. Seu segredo? “Sou muito comunicativo e light. Não brigo com a realidade. Se não me agrada, tento modificá-la com leveza”, ensina. Quando não tem jeito, adapta-se sem contrariedades. “Odeio sapatos. Com a promoção, tive que ceder e comprar meu primeiro par. Saio de casa de tênis e troco no estacionamento da empresa”, segreda, rindo. Rogério Tuma, neurologista do Hospital Sírio-Libanês, de São Paulo, diz que é até possível que o equilíbrio de neurotransmissores seja diferente nessas pessoas, mas a capacidade de sentir-se mais feliz e adaptado está mais ligada a fatores ambientais e de personalidade. “Também importa como eles se distribuem no cérebro. A quantidade de dopamina pode ser a mesma, mas um pode ter mais numa via de comunicação cerebral e outro em outra”, pontua.
Química – Mesmo assim, vale a pena ficar atento, lembra a clínica-geral Dina Kaufman, especializada em medicina chinesa. Se o equilíbrio químico do cérebro não garante felicidade, é certo que o contrário incomoda e muito. Não podemos desprezar a força dos hormônios – que alteram a ação dos neurotransmissores e o humor. “A mulher tem variações diárias de hormônios. Uma depressão pode ser provocada pela queda do estrógeno”, explica ela. Nos homens, a testosterona regula a disposição para o sexo. A médica registra ainda a importância da dieta alimentar, tão valorizada na medicina ortomolecular (leia quadro à pág. 93). A falta de vitamina B6, por exemplo, contribui para o desequilíbrio entre os neurotransmissores. “Felicidade também é o bom funcionamento do organismo. Temos que partir do básico”, defende ela.
Apesar do valor que se deve dar à saúde do corpo, há quem consiga sorrir até mesmo na doença. Para o contentamento que resiste à adversidade, psicólogos, médicos e religiosos defendem a mesma fórmula: autoconfiança e aceitação da realidade – o que não pressupõe, segundo esses observadores atentos, acomodação pura e simples. Afinal, aceitar um fato é o primeiro passo para mudá-lo. A atriz Suzana Vieira é um exemplo típico. Sempre bem disposta, ela está longe de parecer alguém que espera sentado o que deseja. “Problema, aporrinhação todo mundo tem. Só que é chato viver se queixando ou perto de alguém assim”, diz. Suzana não se ampara em religião ou terapias para apaziguar suas aflições. É católica não praticante e não acredita em forças ocultas ou mau-olhado. “Sou intuitiva. Tenho sentido de preservação e vivo numa boa”, afirma. Ela ama a sua profissão, mas acha que seria feliz em qualquer outra porque se sente predisposta a estar bem, a viver com harmonia. Sua argumentação é simples: “Estou viva, tenho saúde e muito orgulho da minha família e de mim.”
Atalho – Há casos extremos em que a própria doença vira um atalho para a felicidade. O risco de estar com os dias contados e a sua superação acabam por fazer as pessoas reavaliarem seus valores e darem uma guinada em suas vidas. Foi o que aconteceu com Jean Lyra, 69 anos, uma inglesa naturalizada brasileira. Em 1981, ela descobriu que estava com melanoma, um dos tipos mais agressivos de câncer de pele. Depois do susto e do corre-corre atrás de tratamento, ela percebeu que não estava vivendo como queria. “Decidi que ia ser o mais feliz possível dentro do tempo que tinha.” Voltou a estudar e a trabalhar. Também virou voluntária do Instituto Nacional do Câncer (Inca). “Deixei de perder tempo com o que não era importante para mim.” Vinte anos depois, curada do câncer de pele e de outro de mama, Jean está satisfeita com sua trajetória. “A doença me transformou. A vontade de fazer coisas positivas aumentou e ficou inevitável ser feliz.”
Nessa busca incessante pela satisfação, há quem não espere fatos tão drásticos para mudar de vida. O stress nosso de cada dia acaba também sendo um veículo. Muitos executivos têm procurado a terapeuta floral Sônia Vergne, interessados na “remontagem do projeto de vida”, um programa que ela desenvolve em cerca de 15 sessões. Sônia trabalha com o que chama de desconstrução de máscaras. “Na infância, absorvemos crenças que se transformam em sofrimento na vida adulta, como “homem não chora”, “só tem valor aquilo que é conquistado com muito esforço”, exemplifica ela. Podemos incluir no pacote de entraves a famosa “culpa judaico-cristã”, engendrada pelas religiões para controlar seus rebanhos. É um conceito muito arraigado na cultura ocidental, ainda que não faça parte do discurso de líderes religiosos modernos. “Essa idéia de que é preciso sofrer para merecer um paraíso distante é uma ideologia criada pelos poderosos para manutenção do poder. Hoje o que a Igreja ensina é que Deus nos quer felizes”, defende padre Júlio Lancelotti, 50 anos. O religioso, à frente da Casa Vida, em São Paulo, é a alegria de 35 crianças de zero a 15 anos portadoras do vírus da Aids. O rabino Henry Sobel, 56 anos, presidente da Congregação Israelita de São Paulo, também se apressa em esclarecer que o judaísmo não defende que os homens tenham que purgar pecados para ganhar o Éden. Ressalta que as pessoas se iludem ao pensar que ser feliz é não ser contrariado. “Só os mortos não têm problemas. Feliz não é aquele que não cai, mas o que sacode a poeira e dá a volta por cima”, brinca.
Cupidos – Uma frase bem-humorada ™e muito conhecida resume outra grande cobrança da sociedade. O homem nasce, cresce, fica bobo, casa, tem filhos e morre. Se há demora em arrumar um par, os amigos casamenteiros metidos a cupidos começam a aparecer. Se a pessoa se casa, a pergunta é: quando virá o primeiro filho. Depois de algum tempo, cobra-se o segundo herdeiro. E assim vai. “Há uma grande dificuldade de acreditar que uma pessoa possa viver feliz sozinha, só com o seu trabalho. A solidão não é aceita como opção de vida”, lembra o psiquiatra Táki Cordás. O modelo de mundo formado a partir de todas essas premissas dificulta a conquista da felicidade. Muita gente, no entanto, tem ido contra a maré sem perder o rumo. É o caso da secretária Maria do Carmo Viana, de Caeté, município mineiro de 35 mil habitantes. Aos 38 anos, ela não se arrepende de não ter saído de sua cidade para trabalhar nos grandes centros como fizeram seus amigos. Também não condiciona sua alegria ao encontro da alma gêmea. “Se aparecer alguém especial, ótimo. Mas o que quero é chegar à velhice com a mesma alegria de agora. A vida é para ser vivida e não lamentada. Desfruto do que ela me oferece”, diz, animada.
Maria do Carmo, livrou-se da camisa-de-força invisível costurada pela insatisfação humana. Para a psicoterapeuta Isabel Villares, esse é o grande desafio. Budista, ela acredita que a felicidade é um estado natural do ser humano, obscurecido por condicionamentos e falsas necessidades. “A felicidade condicionada a fatores externos é artificial”, afirma. Isabel é mãe do lama Michel, brasileiro de 19 anos que em plena adolescência foi reconhecido como a reencarnação de um mestre tibetano. Ele vive em mosteiros hindus e, apesar da pouca idade, vai ainda mais longe. “Se a felicidade viesse de fora, um acontecimento não geraria sofrimento em um e alegria em outro. Quase sempre colocamos nossa felicidade no que ainda não temos ou naquilo que não somos”, diz. Segundo ele, a supervalorização das conquistas materiais nos faz entrar num ciclo de venenos mentais, como a raiva, a inveja, o medo, o apego a pessoas e coisas e até ao próprio sofrimento. O segredo estaria em viver com generosidade o momento presente. “Sem perder de vista os nossos sonhos – que devem incluir a satisfação e a felicidade do outro –, temos que ser felizes agora com o que temos e com o que somos”, ensina o jovem mestre.
Mais prático, o médico e consultor Roberto Shinyashiki acrescenta que para ser feliz é preciso entender a dinâmica da vida. “A vida não pode ser uma eterna celebração. Ora estamos por baixo – é o momento de aprender –, ora por cima – aí sim devemos comemorar, sempre”, defende ele. Dentro desta ótica, aquele que entende que a vida é cíclica seria mais feliz do que o que acumula vitórias. Autor do best-seller O sucesso é ser feliz, Shinyashiki foi o psicólogo oficial da delegação brasileira nas Olimpíadas de Sydney em 2000 e teve de enfrentar grande polêmica quando a seleção retornou sem as glórias esperadas pelos brasileiros. Ele prepara para breve o livro Trabalho é vida e cita exatamente a profissão como grande fonte de sofrimento e frustração. Uma das razões para esse eterno desapontamento é que as pessoas reservam o prazer ao bom resultado, desprezando o que o trabalho em si pode proporcionar. “O pintor deve ficar feliz em pintar e não só em ver a casa pronta. Quase sempre o serviço é encarado como uma tortura e as pessoas dramatizam as mínimas dificuldades. A melhor forma de lidar com o insucesso é perceber o que a vida está tentando nos ensinar. E aprender”, resume ele.