Esta é a história de um imbróglio: a visita do presidente Fernando Henrique Cardoso aos Estados Unidos e seu encontro com o presidente americano, George W. Bush, no dia 30 de março. Para se entender a complicada coreografia traçada para guiar os passos da primeira dança entre o par de líderes, é preciso ouvir a música desafinada que parte dos bastidores dos salões oficiais de Brasília e Washington. Como se sabe, os brasileiros têm mais jeito para o forró, enquanto os americanos, digamos, preferem o foxtrote. Mas os conflitos de interesses entre os parceiros poderiam ser abrandados. Afinal, o forró surgiu dos bailes “for all”, animados a foxtrote e promovidos na década de 40 por militares americanos estacionados em Natal (RN). Bastava que a orquestra binacional encarregada de animar a festa na Casa Branca não atravessasse o ritmo. Infelizmente, não foi o que aconteceu: o cortejo entre presidentes não deu em casamento e complicou a gestação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Desse modo, evidenciou-se a falta de traquejo das equipes dos dois governos e a competência superior da iniciativa privada na condução de negociações.

Os acertos para o encontro dos presidentes começaram a ser costurados com mais sucesso quando o empresário Mário Garnero, presidente do grupo Brasilinvest, enviou em 18 de dezembro uma carta ao ex-presidente americano George Bush. Nessa comunicação, Garnero antecipava sua convicção de que o então candidato e provável presidente eleito George W. Bush teria sucesso em sua confirmação no cargo. Dizia também que, em vista disso, seria muito bom que se agendasse um encontro de aproximação do novo líder americano com o presidente Fernando Henrique Cardoso. Naquela mesma semana, para mostrar descontração diante das batalhas de recontagens de votos na Flórida, os varões da família Bush – George pai e George filho e o irmão Jeb, governador daquele Estado – saíram para uma pescaria na área de Boca Grande. Foi nessa pescaria que George, o velho, vendeu o peixe de Garnero a George, o moço. Ficou acertado que seriam abertos canais de comunicação entre o empresário e a equipe de transição montada pelos republicanos. No dia seguinte, Garnero recebeu um fax de George, o velho, comunicando que a partir dali sua interlocutora seria Condoleezza Rice, meses depois indicada para o cargo de conselheira de Segurança Nacional.

Mário Garnero foi procurado por ISTOÉ para falar sobre esses fatos. O presidente do Brasilinvest, que sabidamente tem laços com a família Bush, não confirmou, mas também não negou essas versões. Preferiu desconversar e pedir um espaço na revista para explicar suas posições num texto que acompanha esta matéria. No entanto, ISTOÉ se certificou dos detalhes desta história através de três fontes independentes, mas que pediram o anonimato. Uma é autoridade do Itamaraty; outra é um empresário da Fiesp e a última é um funcionário graduado da Casa Branca. Também foram checados dados em Nova York, Washington, Brasília, São Paulo e Paris.

“O presidente Fernando Henrique estava em Santa Catarina com o ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, quando Garnero lhe telefonou para contar sobre as possibilidades de um encontro”, diz a fonte do Itamaraty. O presidente ficou empolgado e imediatamente encarregou o ministro Jobim de servir como intermediário de Garnero. “Os planos seriam feitos em surdina e sem a participação inicial do Itamaraty”, diz a fonte da Fiesp. A partir de então, foi elaborada uma pauta de assuntos a serem tratados pelos presidentes e um primeiro calendário da visita. A conversa seria privada, e não uma visita oficial com pompas de protocolo para tais ocasiões. Os presidentes tratariam de Argentina, Colômbia, Venezuela, Cuba e meio ambiente – inclusive do protocolo de Kyoto. E, o mais importante, do Nafta e de como as diferenças entre os dois países poderiam começar a ser resolvidas. De acordo com esse plano, não seria assinado nenhum acordo, dada a brevidade do encontro e a má impressão que poderia causar a outros países do hemisfério, caso percebessem que Brasil e Estados Unidos estavam fazendo acordos isoladamente. “O que se procurava era não esvaziar o Encontro das Américas em Quebec”, diz a fonte da Casa Branca. Rice recebeu esse cardápio via fax, em princípios de janeiro, e enviou o sinal verde para Garnero.

Frutos alheios – Dois detalhes importantes ainda precisavam ser resolvidos: as datas do encontro e o envio de um convite oficial dos americanos ao presidente Fernando Henrique. Numa quarta-feira de janeiro, antes de sua posse, Bush telefonou a seu colega brasileiro e fez o convite. “A partir daí estava tudo certo e o ministro Jobim passou a bola para o Itamaraty. No dia 16 de janeiro, quando assumiu o cargo de ministro das Relações Exteriores, Celso Lafer foi ao Palácio do Planalto e o presidente contou para ele que a visita aos EUA estava acertada. Ao sair da cerimônia de posse, Lafer declarou à imprensa que o presidente havia lhe dado a missão de agendar um encontro com Bush. Ora, nessa altura ele já sabia que a tal tarefa tinha sido cumprida por outros meios que não os do Itamaraty, diz a fonte do Ministério das Relações Exteriores. É de se perguntar se o ministro Lafer não agiu assim para poder colher os frutos de uma negociação que já estava acertada.

Mas não são apenas nos corredores do poder em Brasília que circulam as picuinhas políticas. No lado americano, elas também trafegam com desenvoltura. O encontro de presidentes não havia sido anunciado oficialmente quando foi vazado para o embaixador americano, Anthony Harrington. “Imediatamente, a fogueira das vaidades latino-americanas explodiu. Os presidentes do Uruguai e da Argentina passaram a reivindicar que o encontro os incluísse”, disse a fonte da Casa Branca. O governo americano ficou furioso, pois suspeitava que as negociações, conduzidas sigilosamente, tinham sido vazadas pelo Itamaraty. “Novamente, Mário Garnero foi chamado a intervir. Ele estava fazendo um check-up numa clínica de São Paulo quando o ministro Jobim ligou. Queria saber se era possível diminuir os danos. Garnero mandou um fax para Rice tentando consertar a gafe”, diz o empresário da Fiesp.

Garnero tinha passagem marcada para Roma para um encontro com o papa. Depois disso, teria que tratar de negócios em Paris. Marcou então uma reunião com o ministro Jobim, que estaria na cidade nessa mesma época. Os dois jantaram no Régence e ali a data do encontro entre os presidentes brasileiro e americano ficou oficialmente acertada para o dia 30 de abril. Garnero conseguira acalmar Condoleezza Rice e acertar os ponteiros.

Mas o pior estava por vir. Nessa mesma época, o Itamaraty negociava com gente ligada diretamente a Robert Zoellick – o representante comercial americano – um acordo para ser assinado pelos dois presidentes. Nele, os Estados Unidos desistiriam de sua posição em apoiar a antecipação da Alca para 2003 – uma proposta chilena que é um dos grandes pontos de conflito entre Brasil e Estados Unidos sobre a questão. Segundo o novo compromisso, a instalação da Alca continuaria marcada para 2005. E mais: seria antecipada a data em que os dois países deveriam assumir em conjunto a presidência da comissão que orienta os grupos de trabalhos da Alca. O Equador, que preside a comissão agora, foi orientado pelos brasileiros para aceitar esse acordo. Tudo isso, é claro, era novidade para a Casa Branca e para a conselheira de segurança Rice.

“Ao ser informada do que estava por vir, Rice ficou furiosa. Não concordava com a proposta e indignou-se com o fato de que Zoellick tinha acertado esse acordo sem autorização. O combinado era apenas uma reunião de trabalho entre presidentes, e não a assinatura de um compromisso”, diz a fonte da Casa Branca. Na visão de Rice, uma decisão como esta seria a capitulação completa dos Estados Unidos. “Nós não apenas nos curvaremos completamente às exigências brasileiras como também daremos como bônus, que eles nunca pediram, a antecipação da co-presidência da comissão da Alca. Como é que se justifica isso?”, teria dito a conselheira de segurança de Bush numa reunião no Salão Oval. Imediatamente ficou decidido que o Departamento de Estado americano lançaria um memorando de uma página, reafirmando os objetivos americanos, principalmente sua posição pela antecipação da Alca para 2003. Dez dias antes da viagem do presidente Fernando Henrique, esse comunicado foi passado a todos os países da América Latina.

Desconfiança – Desta forma, o encontro entre presidentes foi esvaziado. O Brasil não apenas viu frustradas suas expectativas de melhorar o relacionamento com os EUA como passou a ser olhado com desconfiança por empresários brasileiros e pelos países latino-americanos, por tentar negociações secretas. Nessa desafinada orquestra com músicos americanos e brasileiros ficaram claros alguns pontos. Primeiro: o Itamaraty não sabe com quem negociar no governo americano. Não tem inteligência – quanto à coleta e análise de informações – para definir quem manda nos Estados Unidos. Bastaria a leitura de jornais americanos para saber que o Departamento de Comércio e por extensão o US Trade Representative não estão com esta bola toda. Bush já anunciara que o centro de decisões em seu governo havia mudado. Sabe-se que o braço forte da Casa Branca agora é Rice. Por outro lado, não se deve culpar apenas o Itamaraty pelos erros, pois, afinal, se o representante de comércio dos Estados Unidos não apita nada nas questões de comércio, qual é sua função? E mais: os Estados Unidos passam a ser vistos cada vez mais como um país não confiável. Num intervalo de dois meses, o governo Bush voltou atrás em vários acordos que estavam acertados em negociações internacionais. Decretou a morte do Protocolo de Kyoto, recuou no Tratado do Mar, saiu da mesa de negociações com a Coréia do Norte e, agora, desautorizou um acordo com o Brasil, firmado por uma autoridade graduada desta administração. Desse jeito, como é que se pode confiar em qualquer acerto da Alca, em 2003, 2005 ou seja lá em que data for? 

Lição de casa

Mário Garnero

Acompanho com interesse, mas com certa surpresa, o desenrolar desses primeiros lances das relações Brasil-EUA desde a posse do presidente George W. Bush. Surpresa porque, em lugar de aproveitarmos as muitas chances que se apresentam ante a maior economia do mundo, encontramo-nos por vezes divididos diante de falsos antagonismos. Confundem-se o relacionamento bilateral com os EUA e o futuro da Alca. Apresentam-se as iniciativas Alca x Mercosul como opções excludentes. Mais do que destino ou opção, adensar as relações com os EUA e avançar no cronograma da Alca representa sobretudo uma oportunidade para o Brasil. E muitos já chegaram a essa conclusão e estão prontos a desfrutar dessas possibilidades. A sociedade civil americana, por meio do Conselho de Relações Exteriores (CFR), lançou recentemente uma lúcida reflexão, na forma de um memorando endereçado ao presidente dos EUA, sobre a importância de se conferir renovado fôlego às relações EUA-Brasil. A leitura deste memorando parece mostrar que, no que toca às oportunidades na “nova economia brasileira”, os EUA estão dormindo no ponto, principalmente se comparados com os europeus. A falta de presença americana nesse setor teria levado à ultrapassagem, em 2000, da Espanha sobre os EUA como principal investidor no País.

Cumpre a nós também fazer uma “lição de casa”. Agora é a hora de empreendermos um repensar de nossa parceria com os EUA. E é a esse exercício que o Fórum das Américas vai se lançar nos próximos meses, com a participação e consultas de empresários, acadêmicos e organizações não-governamentais. Na área comercial, trabalharemos com base na constatação de que não é possível, por exemplo, que não contemos em Nova York, capital comercial e financeira do mundo, ou em cidades como Los Angeles, Dallas ou Seattle, com uma estrutura mais robusta para a promoção das nossas exportações. Também é de estranhar que, no ápice da prosperidade americana, e mesmo após a brusca desvalorização do real em 1999, o Brasil seja o único grande país do mundo a contabilizar déficits comerciais com os EUA. Nossa pauta de exportações estacionou no tempo e precisa ser repensada. Não podemos permitir que o impasse nas tratativas sobre dois produtos de baixo agregado tecnológico, como o aço e o suco de laranja, domine o panorama do comércio bilateral. Devemos também oferecer elementos às autoridades dos dois países para que se ponha fim à exigência mútua de vistos de entrada, o que desacelera, no campo do turismo e dos negócios, a veloz dinâmica que se quer para os dois países.

Queremos promover um exercício de realismo, que não atribui essa renovada interação Brasil-EUA ao papel exclusivo dos governos. Um exercício que reconheça a contribuição fundamental que empresas, ONGs e outras entidades do chamado “terceiro setor” também têm de fazer.

*Mario Garnero preside o Conselho de Administração do Grupo Brasilinvest, o Fórum das Américas e a Associação das Nações Unidas-Brasil.