Zero hora e 12 minutos da segunda-feira-26. Uma pequena luz desponta no horizonte do imenso rio Amazonas. O radar do navio Leblon, de propriedade da Aliança Navegação, detecta a presença de um grande objeto. Pelo binóculo, a segunda oficial de náutica Vitória Régia Coelho da Costa, 23 anos, avista um gigantesco petroleiro na rota do Leblon. As luzes de navegação denunciam que o navio esta à deriva. Imediatamente, a primeira pilota da história da Marinha Mercante brasileira inicia a manobra de desvio. Ela altera a rota do navio em 1,5 grau. A mudança evita que as 33.920 toneladas do cargueiro e os mais de US$ 100 milhões de mercadorias transportadas se choquem contra o petroleiro. Os dois navios ficaram a pouco mais de um quilômetro de distância. Parece muito. Mas em navegação é quase nada. O Leblon passou raspando.

Situações como essa serão comuns na vida dessa meiga e vaidosa cearense de 1,63 m, 50 kg, cabelos louros e pele clara. Recém-formada pela Escola de Formação de Oficiais da Marinha Mercante (Efomm), de Belém, no Pará, a mulher que carrega o nome da maior das flores amazônicas é a primeira a chegar ao quadro de oficiais da navegação privada do País. “Eu olho aquele marzão, aquele navio imenso na minha mão, fazendo o que eu quero. É um sonho”, suspira, deslumbrada.

Apaixonada pela vida militar, desde pequena sonhava entrar para uma das três Forças. Vibrou quando o irmão, Max Scheller, ingressou no Exército. “A farda me fascinava”, confessa. Aos 11 anos, entrou no Colégio Militar de Fortaleza. Fez parte da primeira turma de meninas da instituição. Ao término do colegial, iria tentar uma vaga no quadro de oficiais do Exército. Na última hora, a instituição cancelou o ingresso de mulheres em suas fileiras. A Efomm foi a salvação. Pela primeira vez, a escola aceitaria mulheres em seu curso de instrução. Apesar de formar profissionais para a navegação comercial, a Efomm é administrada pela Marinha de Guerra.

Preconceito – Mas o pioneirismo tem seu preço. Assim que chegou a Belém, descobriu que o Centro de Instrução Almirante Braz de Aguiar (Ciaba) não tinha acomodações para mulheres. Ela e as outras oito meninas que embarcaram na aventura teriam de dormir em um alojamento improvisado. Mas esse não era o único problema. Vitória deu de cara com um inimigo duro, traiçoeiro, que ameaça acompanhá-la por toda a carreira: o preconceito masculino. “Fui vítima de uma série de injustiças. Meus colegas de turma faziam piadas sujas comigo. Inventavam que eu namorava os oficiais para conseguir privilégios. Pura mentira. Era próxima deles porque eram os únicos que me respeitavam.” Nos corredores do Ciaba, Vitória recebeu o carinhoso apelido de “Cobra”.

A aspirante aguentou o tranco sozinha. Só voltou a sorrir durante a praticagem, o equivalente ao trabalho de conclusão de curso de uma faculdade normal. A atividade foi feita a bordo do navio Flamengo, também da Aliança, no final do ano passado. Pela primeira vez, Vitória saiu do Brasil. A cearense passou pelos portos de Miami, Baltimore, Norfolk, Savanaah e Nova York. A Big Apple a deixou encantada. E qual foi o primeiro programa dela na cidade? “Assim que o navio atracou, desci e saí correndo para o shopping. Era bem diferente dos nossos”, diz.

Sonho – No final da praticagem, a Aliança a contratou. A partir daí, começou a ter um contato direto com a dura rotina de bordo. Atualmente, ela está em Fortaleza, vinda de Manaus. Durante a ida à capital amazonense, Vitória dormia em média cinco horas por noite. Pilotava o navio da 0h às 4h e das 12h às16h. Era responsável também por toda a manutenção dos equipamentos de segurança e, para completar, cuidava da enfermaria. Fora isso, tinha de participar das manobras de atracação e desatracação do navio. Por todo esse trabalho, Vitória recebe cerca de R$ 3,8 mil mensais, entre salários e diárias. Quando chegar a comandante, seu grande sonho, pode receber algo entre R$ 15 mil e 20 mil. Mas a remuneração razoável não é desculpa para abusos. “Todo o sofrimento é pouco para esse corpo. Mas não entrei nessa profissão para ser explorada. Não quero ninguém passando a mão na minha cabeça, mas também não quero ser sobrecarregada”, diz, num claro aviso a algum marmanjo mais folgado.

Assim que chega a um porto, a vaidosa lourinha corre para o cabeleireiro. Diz não ligar muito para grifes. Mas confessa que um jeans Zoomp lhe cai bem. É louca por perfumes. Gabriela Sabatini, Tifany e Giovanna Baby, este só para o dia, são os preferidos. As poucas horas vagas no navio são passadas na companhia de Enya, Geraldo Azevedo, Zé Ramalho, Legião Urbana e, principalmente, o Bolero, de Ravel, a música preferida. É leitora fiel de Tom Clancey e Sidney Sheldon. Se tivesse que escolher outra profissão, seria atriz. Está namorando. Mas não diz o nome do moço nem por uma caixa de chocolates, outra de suas paixões. Casamento é um assunto complicado. Ainda mais para alguém que passa pelo menos nove meses no mar. Medo? Só de perder a mãe, dona Marilac, que vive em Fortaleza. A pedido de Vitória, a Aliança permitiu que ela a acompanhasse na viagem. TPM, menstruação, crises afetivas e outras peculiaridades femininas não a preocupam tanto quanto a possibilidade de sofrer uma tentativa de assédio no navio. A concentração de hormônios masculinos, somada aos longos confinamentos das viagens, aumenta o risco. Mas ela se diz precavida. “Se isso acontecer, levo o caso ao comandante. Se ele não tomar providências, comunico à empresa e desço no primeiro porto.”

Vitória Régia é a primeira de uma leva de garotas oficiais que invadirá os navios da Marinha Mercante. No Leblon, viajavam quatro estagiárias. A irmã de Vitória, Ticiane Fabrícia Moreira Coelho, 20 anos, e as cariocas Talita Silva Menezes, Ana Karina Agostinho de França e Carla Cardoso Malafaia, todas com 21 anos. Aos poucos, elas dão um toque feminino à embarcação. Em Fortaleza, compraram um jogo de mesa cor-de-rosa para o refeitório. Ana quer pôr um pôster de Reinaldo Gianecchini na casa de máquinas. Há mais 56 garotas estagiando em outras embarcações. “Se não se cuidarem, nós vamos tomar o lugar deles”, brinca Vitória. É bom tomar cuidado, marujos. Um velho ditado diz que toda brincadeira tem um fundo de verdade.

O que eles pensam

O que os homens estão achando da invasão feminina? O índice de aprovação às mulheres no Leblon é alto. Mas alguns marinheiros ainda parecem meio desconfiados. “Elas têm que trabalhar. O homem não vai deixar de fazer suas coisas para cobrir uma deficiência da mulher”, diz o chefe de máquinas Aírton Barbosa Martins, 42 anos. Ele é o responsável pela instrução de Ana Karina, a única das quatro estagiárias a trabalhar no compartimento do motor do navio. O comandante do Leblon, Demontier J. C. Vasconcelos, 46 anos, prevê algumas dificuldades. “A mulher pode fazer qualquer coisa. Vão surgir algumas situações novas para nós, como gravidez, menstruação e outras coisinhas. Mas o sucesso só depende delas.” Quanto ao assédio, parece que elas não têm por que se preocupar. “É só se dar ao respeito e pronto”, afirma o taifeiro poliglota Miguel Bastos do Rego, 67 anos.