11/04/2001 - 10:00
O gasoduto Bolívia-Brasil tornou-se o pivô de uma guerra comercial entre a Petrobras e as multinacionais de energia que entraram no negócio na exploração do mercado de gás natural na América Latina. Nos últimos meses, duas gigantes do setor – a norte-americana Enron e a inglesa British Gas – conseguiram da Agência Nacional do Petróleo (ANP) o passe para transportar gás pelo gasoduto, um megaempreendimento de US$ 2,2 bilhões com 3,1 mil km de extensão e capacidade de levar 30 milhões de metros cúbicos de gás por dia de Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, até o Rio Grande do Sul. As decisões da ANP, órgão federal que funciona como juiz e xerife do setor de petróleo e derivados, acenderam o sinal vermelho na diretoria da Petrobras, que já pensa em entrar na Justiça contra as determinações da agência, caso sejam confirmadas. O motivo para a reação da estatal está nos prejuízos que a filosofia adotada pela ANP em relação ao mercado de gás pode causar à própria empresa, ao contribuinte e ao País.
No lado brasileiro, a construção do gasoduto foi liderada pela Petrobras, que aportou para a obra cerca de US$ 1,3 bilhão. Do total, a estatal tirou do bolso mais de US$ 200 milhões e amealhou outros US$ 690 milhões em empréstimos com garantia do Tesouro Nacional. Para assegurar condições de pagar a dívida, fechou contratos de fornecimento de gás com distribuidoras estaduais espalhadas ao longo do gasoduto, que também alimentará 11 termoelétricas, todas integrantes do programa emergencial do governo que tenta evitar ou, ao menos, abrandar o quase certo racionamento de energia. Agora, por conta da ANP, a Petrobras vê o risco de perder espaço e clientela para as concorrentes multinacionais, que tiveram participação marginal no projeto. As duas conseguiram junto à agência – com custos mais baixos do que os da Petrobras – o direito de passar gás pelo gasoduto. No caso da British Gas, a Petrobras é obrigada a ceder espaço no tubo mesmo que ele esteja ocupado pelo seu próprio gás. As quantidades autorizadas pela agência são pequenas, mas abrem um perigosíssimo precedente.
A ANP, dirigida por David Zylbersztajn, genro do presidente Fernando Henrique Cardoso, diz que arbitrou a favor da livre concorrência e isso permitirá a chegada de gás mais barato ao consumidor. O argumento até valeria se os preços da Petrobras fossem mais altos por ineficiência ou manipulação. Não é o caso. As tarifas foram definidas pelo próprio governo há nove anos. Para estimular o desenvolvimento do mercado de gás em todo o País, o governo fixou uma regra excepcional, segundo a qual o preço do transporte do gás entregue em Corumbá, no início do gasoduto, seria exatamente igual ao praticado na ponta oposta, em Porto Alegre. Sem isso, o gás chegaria tão caro ao Sul que não haveria compradores. A agência de Zylbersztajn quebrou a regra e permitiu que as duas multinacionais paguem tarifas conforme a distância percorrida pelo gás a ser entregue. Quanto mais curta for a viagem, menor o custo. As correspondências trocadas entre a Petrobrás e a ANP dão o tom da preocupação dos executivos responsáveis pelo setor de gás na estatal. “A Petrobras está exponencialmente vulnerável”, diz uma das cartas enviadas ao primeiro-genro em setembro do ano passado. “A ANP pode estar apenas viabilizando a figura do atravessador”, acrescenta, referindo-se à Enersil, empresa controlada pela Enron. A gigante texana é acusada pelas associações de consumidores da Califórnia, onde fornece energia, de atuar como uma “bucaneira”. Sétima do mundo no setor de energia, a companhia americana especializou-se em intermediação. Por exemplo, compra e vende contratos de fornecimento de gás. A sua marca registrada é a agressividade, muito diferente da elegante concorrência propalada pela ANP. Na Bolívia, onde controla um gasoduto estratégico, a Enron aplicou um chute na canela da Petrobras. Exigiu preços tão altos para transportar gás da brasileira que a estatal preferiu construir seu próprio duto, paralelo ao da texana. Já a British está de olho no suculento mercado paulista, onde controla a distribuição na região metropolitana. Nessa disputa comercial, o presidente da Petrobras, Henri Philippe Reichstul, e sua equipe estão ganhando aliados. O deputado Fernando Ferro (PT-PE), um representante dos petroleiros, decidiu investigar o caso. “As duas estrangeiras estão tentando especular com a venda de gás e a ANP permite isso”, ataca ele.