Sempre que os empregados de Turpmtine, uma fazenda de 12 mil hectares de campos, bosques e pântanos, cantam uma canção escrita há mais de um século, o dono da propriedade ri satisfeito. É que, além de chamar-se Charlie Croker – homônimo do barqueiro citado nos versos –, este megaespeculador imobiliário da cidade americana de Atlanta, aos 60 anos se sente um homem realizado. Sua vaidade sem limites o levou a batizar com o próprio nome seu mais recente empreendimento, um espigão de concreto onde enterrou US$ 1 bilhão. É em torno da vida deste fictício dínamo egocêntrico, ariano homófobo e racista, que o jornalista e escritor americano Tom Wolfe teceu o enredo de seu novo livro, Um homem por inteiro (Rocco, 662 págs., R$ 39,50). Como o personagem do filme Cidadão Kane, de Orson Welles, Croker construiu um refúgio para si. Seu Xanadu é a fazenda de codornas Turpmtine – de turpentine, terebintina, a fonte de renda original do lugar, uma palavra que nenhum dos trabalhadores negros jamais pronunciou corretamente. No decorrer do romance ela se tornará uma obsessão, exatamente como a metáfora de Rosebud de Cidadão Kane.

O estopim da trama é aceso quando Fareek, apelidado Canhão Fanon – um superastro negro de futebol americano, ídolo do time Georgia Tech –, é acusado de estuprar uma menina branca. Como se não bastasse, a garota é filha de Inman Armholster, outro peso pesado do mundo dos negócios em Atlanta. Com medo que a mídia atire gasolina nesse princípio de incêndio, provocando uma convulsão na cidade, o prefeito negro Wesley Dobbs Jordan convoca o advogado e irmão de cor Roger White II, um almofadinha conhecido desde o ginásio como Roger Too White (muito branco). Do encontro, o nome de Croker acaba surgindo como uma tábua de salvação, já que, além de ex-atleta, é amigo de Armholster. Há, porém, um detalhe: por causa das suas relações perigosas e nem tanto, Charlie Croker se vê acossado entre duas situações e não sabe se apóia Fanon ou Armholster.

 

Infarto – Esta é apenas uma pálida idéia do emaranhado de histórias e personagens contidos no segundo romance de Wolfe, um calhamaço que lhe custou 11 anos e um infarto, com direito a cinco pontes de safena, e que à primeira vista pode ser confundido com um novelão. A diferença é que ao analisar os mecanismos do poder, político ou não, ao confrontar ambientes tão díspares quanto as mansões aristocráticas de Atlanta e suas festas, e as prisões californianas e suas guerras de gangues, Wolfe acabou fazendo um raio X preciso da América e da sociedade em geral neste final de século. Inicialmente batizado de Os borrachudos, Um homem por inteiro começou a ser escrito logo após o lançamento de A fogueira das vaidades (1987), um outro retrato profundo da loucura de Nova York, cidade onde as coisas só existem se aparecerem na televisão.

Após inúmeras modificações, o romance de Wolfe saiu nos Estados Unidos, no final do ano passado, com a tiragem recorde de 1,2 milhão de exemplares. Logo no lançamento provocou uma guerra entre as estrelas do mundo literário, polêmica que Wolfe havia esquentado antecipadamente com Emboscada no Forte Bragg, uma noveleta mordaz, lançada aqui em livro e lá publicada em capítulos na revista Rolling Stone e em audio book com a voz do ator Edward Norton, o astro de A outra história americana. Assim que o novo livro de Wolfe chegou às lojas, o escritor John Updike apressou-se em dizer que se tratava de "entretenimento, e não literatura", opinião compartilhada por Norman Mailer, que escolheu como título para sua crítica de Um homem por inteiro, a azeda expressão Um escritor pela metade. Mailer chegou a compará-lo à Margaret Mitchell, autora de …E o vento levou, coincidentemente escrito em Atlanta. Wolfe não deu a menor bola. Enquanto vê sua história esgotar-se nas prateleiras, está mais preocupado em estudar as propostas de aquisição dos direitos para o cinema, que chegam aos montes. A análise delas, ele sabe, deve ser feita com cautela. Afinal, nem mesmo o talento de Brian De Palma conseguiu salvar do desastre a adaptação para as telas de A fogueira das vaidades (1990), em que Tom Hanks no papel do poderoso Sherman McCoy parecia Bambi querendo passar por Godzilla.

 

Falhas – Como acontece com todo livro que é escrito para fazer sucesso – e Wolfe empenhou sua palavra nisso –, Um homem por inteiro também tem suas falhas. A principal delas, para muitos imperdoável, é o ritmo apressado com que ao final as inúmeras histórias se ajustam. Mas o que prevalece mesmo é o estilo de Wolfe, ora sintético, ora bombástico nas descrições exacerbadas, já observado no ensaio A palavra pintada ou na reportagem Os eleitos. Seguindo a mesma linha, Tom Wolfe, um dândi nascido em Richmond, Virginia, encerra seu volumoso romance com uma simples frase, provavelmente cunhada no luxuoso apartamento de 12 cômodos que divide com a mulher, Sheila, e o casal de filhos adolescentes, situado no elegante Upper East Side nova-iorquino: "Eu voltarei." John Up-dike e Norman Mailer podem ironizar, mas os leitores de Tom Wolfe agradecem.