Numa noite do ano de 1978, o menino de rua Roberto Carlos Ramos, 12 anos, se deitou sobre trilhos da rede ferroviária de Belo Horizonte e esperou o trem passar para morrer. Poucas horas antes, ele tinha sido espancado e estuprado por uma turma de garotos ao resistir em se tornar a "mulher de todos" para pertencer ao grupo. Mas o trem seguiu por um desvio e Roberto Carlos sobreviveu. "Nem para morrer eu sirvo", pensou. Ele tinha motivos para tanto. Interno da Febem desde os seis anos de idade, o garoto já contabilizava mais de 50 fugas da instituição na qual fora deixado pelos pais que nutriam a esperança de que, lá, o caçula dos seus nove filhos teria o que comer. Analfabeto, fumava cigarro, cheirava cola e, nas ruas, roubava para comprar maconha. Aos nove anos, era considerado caso perdido pelos educadores da Febem. Como o trem que não o atropelou, contudo, a vida de Roberto Carlos também seguiu por outros trilhos.

Hoje, aos 33 anos, ele é pedagogo formado pela Universidade Federal de Minas Gerais. Sua salvação aconteceu um ano após a tentativa de suicídio, quando a pedagoga francesa Marguerit Duvas fez uma visita à Febem e o viu. "Ela disse que queria me entrevistar. Achei que era louca e fugi", lembra Roberto. A pedagoga o encontrou na rua e o levou para sua casa. "Fui pensando em roubar." Ele não só mudou de idéia como estendeu sua estada de uma semana para sete anos. Nesse tempo, foi alfabetizado em francês e em português. Aos 14 anos, passou de analfabeto a bilíngue em seis meses. Dois anos depois, a pedagoga o levou à França, onde ele recuperou o atraso escolar. Concluiu o segundo grau com 18 anos e entrou na faculdade. "Fui abençoado por um anjo da guarda encarnado, que ensinou o que é o amor pelas pessoas", diz o ex-menino de rua. Sua fada madrinha, a pedagoga Marguerit, morreu de aneurisma cerebral quando Roberto tinha 20 anos.

Formado, ele estagiou na mesma Febem que um dia o considerou irrecuperável. Lá iniciou o capítulo mais incrível de sua história. "Numa tarde, um guarda falou para mim: ‘Doutor negão, tem um garoto aqui que é um caso perdido.’" Fui falar com o menino e ele me disse que tinha uma doença, pois ninguém queria ficar com ele. Levei-o para casa para passar uma semana, mas ele acabou ficando." O garoto, chamado Alexandre, foi o primeiro. Vieram depois Moisés, Abraão, Nilton, Wanderley, Aílton, Leandro, Flávio, Florisvaldo e, ufa!, Gílson. Todos garotos de rua. "Parei de cheirar cola depois de conhecer ele, que me incentivou a trabalhar. Hoje sou decorador", diz Aílton Ferreira, 20 anos, um dos garotos adotados. "Tenho a guarda provisória de todos eles", conta Roberto Carlos. Ele trabalha como contador de histórias em escolas de Belo Horizonte. "Falo sobre sexualidade, violência nas escolas, assuntos que fazem parte da realidade dos jovens", explica o educador, que, em julho próximo, vai à Universidade de San Diego, nos Estados Unidos, dar palestras sobre meninos de rua do Brasil. Entre todas as histórias de seu repertório, a mais incrível é, provavelmente, a sua.