Quem conhece o presidente Fernando Henrique Cardoso sabe: seu poder de sedução e sua capacidade de dizer o que o interlocutor quer ouvir são o segredo de seu sucesso. Nos últimos dias, no entanto, a política do gogó está num viés de baixa. É como se o efeito teflon, aquele que impede que qualquer denúncia grude no presidente, tenha sido danificado. Flagrado no grampo do BNDES em diálogos reveladores com o então presidente do banco, André Lara Rezende, FHC teve uma semana de cão. Na terça-feira 25, o jornal Folha de S. Paulo expunha em 12 páginas as transcrições de 46 fitas que escancararam mais do que a promiscuidade entre autoridades do governo e empresas privadas no processo de privatização da Telebrás. Estavam ali o modus operandi tucano, uma ação entre amigos, e o estilo Fernando Henrique de falar não, quando quer dizer sim: "Não tenha dúvida." Foi com essa frase que o presidente respondeu quando Lara Rezende perguntou se podia usar "a bomba atômica presidencial" para convencer a Previ a aderir ao consórcio montado pelo Banco Opportunity.

Nos dias seguintes, apesar do relativo sucesso da operação abafa, que tentou transferir a responsabilidade do vazamento à oposição e jogou qualquer investigação para debaixo do tapete, teve queda na Bolsa, subida do dólar e muita crise política. Ao mesmo tempo que duas pesquisas (Vox Populi e Ibope) registravam que a popularidade presidencial estava quase no fundo do poço, a base governista deixava vazar água por todos os lados. As investigações do Ministério da Justiça estão quase provando que o grampo foi coisa da Abim, a agência de informações do general Alberto Cardoso, chefe do Gabinete Militar da Presidência. É o governo gravando o governo. Para terminar a semana, o ministro da Previdência, Waldeck Ornelas, afilhado de ACM, caiu de pau em José Serra, da Saúde, que, além de cacique tucano, andou dizendo que o governo demorou para reagir à arapongagem. É a eterna guerra entre PFL e PSDB.

Cordão sanitário Mas a divulgação das fitas pelos jornalistas Fernando Rodrigues e Elvira Lobato foi um soco na boca do estômago – que levou FHC às cordas. Mostrou que Fernando Henrique sabia e deu aval à operação comandada por André Lara e pelo ex-ministro das Comunicações Luiz Carlos Mendonça de Barros em favor do Opportunity na disputa pela Tele Norte – Leste. Confirmou também que as primeiras versões das conversas grampeadas foram montadas com trechos escolhidos a dedo para preservar o presidente da República.

Pela primeira vez, foi rompido o cordão sanitário armado pelo Palácio do Planalto para evitar que os escândalos chegassem a Fernando Henrique. Amigos e aliados avaliam que agora só há um jeito de o presidente sair do canto do ringue e retomar a iniciativa política: abandonar o estilo vacilante e assumir o risco de promover uma ampla reforma no Ministério capaz de finalmente dar início a seu segundo governo. "Agora é o melhor momento para ele fazer isso. Mais tarde, não haverá outra oportunidade", adverte o líder do PSDB na Câmara, deputado Aécio Neves (MG). Mas a memória do "não tenha dúvida" fez com que mesmo os mais chegados ao presidente não acreditem que ele terá coragem de escolher uma nova equipe de governo sem ceder às imposições dos partidos aliados. "Se eu o conheço bem, vai tentar empurrar a mudança ministerial com a barriga até o segundo semestre", lamenta um ministro amigo de FHC, desiludido com sua forma de atuação.

Além de ser por temperamento avesso a correr riscos – não fazia isso nem nos momentos em que estava em lua-de-mel com a população –, Fernando Henrique agora está mais fragilizado do que nunca. Enfrenta o descrédito da opinião pública e depende politicamente cada vez mais de seus parceiros no Congresso. Os aliados do PMDB e do PFL aproveitam o abatimento do presidente para ganhar mais espaços. Isso ficou bem claro na manhã da terça-feira 25. Enquanto Fernando Henrique disparava nervosamente telefonemas para todos os lados e reunia tucanos e alguns assessores no Palácio da Alvorada para preparar uma defesa da atuação do governo no leilão da Telebrás, o presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães, e o presidente do PMDB, Jader Barbalho, decidiam seguir outro rumo. Descartaram a criação de uma CPI para investigar a privatização e um pedido de impeachment apresentado pelas oposições, mas resolveram que só iriam defender Fernando Henrique. "Em hipótese alguma, vamos avalizar as trapalhadas do Mendonça de Barros e do André Lara, que tentaram envolver o presidente nessa negociata", disse Jader, fulminando a estratégia tucana. "Isso é uma falsa solidariedade, porque o que aconteceu no leilão foi uma ação plenamente defensável do governo", reagiu Aécio. Não é isso o que pensam os aliados.

Antes mesmo da divulgação das fitas, ACM e seus correligionários emitiram sinais de que sabiam do estrago que as gravações poderiam causar. "Eu já alertei o presidente de que as crises econômicas são passageiras, mas as crises morais podem manchar as biografias dos homens honrados", contou Antônio Carlos numa palestra, na sexta-feira 21, no Rio. Dias antes, o líder do PFL na Câmara, Inocêncio Oliveira, havia dado o mesmo recado de forma mais explícita, numa resposta às críticas de Mendonção ao ministro da Fazenda, Pedro Malan. "Antes de partir para o ataque, o Mendonça de Barros deveria levar em conta que nem todas as fitas gravadas no grampo do BNDES foram divulgadas." Os tucanos desconfiam que essas declarações premonitórias não são mera coincidência. Ainda existe no ar a ameaça de que um terceiro diálogo grampeado de FHC possa aparecer. "O presidente da República hoje é prisioneiro dessas fitas", aposta o presidente do PT, José Dirceu, resumindo o sentimento de muitos governistas.

 

Visões diferentes Nesse clima de suspeição entre os parceiros, Fernando Henrique fica ainda mais inseguro em relação ao caminho que deve trilhar. O dilema de FHC é agravado pelas diferentes visões de seus aliados sobre o que deve ser trocado no governo. Os tucanos acham que é preciso mexer na equipe econômica, substituindo os ministros Pedro Malan e Pedro Parente. Com apoio do PMDB, ACM simplesmente veta essa mudança. Os peemedebistas querem trocar outras peças. Avaliam que o problema do governo está na falta de uma coordenação política e de uma assessoria eficiente no Planalto. Defendem a saída dos ministros das Comunicações, Pimenta da Veiga, e do chefe da Casa Civil, Clóvis Carvalho. O PFL está partindo para cima dos tucanos. Depois de fechar as portas para Mendonção, a turma de ACM mirou em Serra. Na quinta-feira, Waldeck Ornelas classificou de "decisão sádica" o fim da isenção para os hospitais filantrópicos do pagamento da contribuição previdenciária. "Serra é egocêntrico, desagregador e assumiu o papel de patrono da pilantropia", atacou.

 

Desagregação Não é só na área social e política que a desagregação está tomando conta do governo. A antiga queda-de-braço da Polícia Federal com o Gabinete Militar também está saindo do controle. Com as trapalhadas do ex-diretor da PF Vicente Chelotti, o general Cardoso ganhou terreno na disputa. A PF viu a possibilidade de dar um troco nas investigações sobre o grampo que estão se encaminhando para apontar subordinados do general na Agência Brasileira de Informações como responsáveis pela escuta clandestina. Com autorização judicial, a PF grampeou os telefones de três agentes da Abin. Na quinta-feira 27, o general Cardoso mandou uma carta ao ministro da Justiça, Renan Calheiros, em que cobra explicações sobre uma versão publicada no Correio Braziliense de que ele teria sido grampeado. "Quero saber que fígado vou atingir. Alguém tem de pagar por isso", vociferou o general, mesmo depois de Renan ter desmentido a escuta de seus telefones. O curioso é que tanto Renan como o general estão apoiando o projeto do deputado Miro Teixeira (PDT-RJ) de se conceder anistia prévia a dois informantes que estariam dispostos a contar de onde partiu a ordem do grampo.

Enquanto seus subordinados se engalfinham, o presidente não esboçou nenhuma reação para retomar as rédeas. Amargurado, FHC tem-se mostrado preocupado em preservar sua biografia. Disse que não vão transformá-lo em um Fernando Collor. "Chego aos 68 anos tendo toda uma vida de trabalho. Nunca tive qualquer coisa, a mais remota, que pudesse criar suspeição de algum interesse no exercício do cargo público que não fosse o povo, não fosse o meu país. Nunca", defendeu-se FHC, num discurso na quinta-feira. Com a ampla base de apoio que ainda dispõe no Congresso, sempre a postos para abafar investigações incômodas, Fernando Henrique está longe de ter o mesmo destino de Collor. Mas terá de pagar caro por isso. A cada nova denúncia, os aliados aumentam o preço da fatura. Se não conseguir promover uma reviravolta, o presidente corre, com apenas cinco meses de mandato, o risco de virar um fantoche e repetir o melancólico final do governo Sarney. "Ou o governo parte para o jogo pesado, ou este será o seu final", disse um ministro ao próprio presidente. Chegou a hora da verdade para FHC.