26/05/1999 - 10:00
Depois de apenas cinco meses de mandato, o segundo governo do presidente Fernando Henrique Cardoso assemelha-se mais e mais a um bólido sem piloto perdido em meio a uma corrida de Fórmula 1. Sob uma saraivada de denúncias levantadas na CPI dos Bancos, o presidente está promovendo uma maratona de reuniões para tentar manter o carro na pista, mas não consegue segurar o volante. Na última semana, a brigalhada que tomou conta do governo e dos partidos que compõem a base aliada produziu outros sinais de desastre à vista. No momento em que FHC estava comemorando os primeiros indicadores econômicos favoráveis depois da atabalhoada desvalorização do real, o PSDB fez uma convenção nacional para eleger a nova direção do partido e ressuscitou a bandeira do "desenvolvimentismo". Embalados pela mudança do câmbio e a queda das taxas de juros, os tucanos escalaram o ex-ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros, guindado a uma das vice-presidências do partido, para deixar claro que estão incompatibilizados com a política feijão-com-arroz do ministro da Fazenda, Pedro Malan. A discussão sobre os rumos da economia acabou em bate-boca. O ministro sentiu a estocada e classificou como "uma nostalgia dos anos 50" a pregação tucana. "A visão de Malan se encaixa na Suécia, mas não no Brasil. É indispensável manter a estabilidade econômica, mas, ao contrário do ministro, acho que a sociedade brasileira ainda precisa do Estado", treplicou Mendonça de Barros.
A língua afiada do ex-ministro das Comunicações aumentou ainda mais o abatimento de Malan, desgastado pelas apurações da suspeitíssima operação de socorro aos bancos Marka e FonteCindam. Malan reclamou com seu padrinho político, o presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães (PFL), que alertou Fernando Henrique sobre o risco de seu ministro mais uma vez pedir demissão. Na manhã da quarta-feira 19, promoveram um faz-de-conta para tentar mostrar que o ministro está prestigiado. Malan, o ministro de Orçamento e Gestão, Pedro Parente, e os secretários-executivos dos dois ministérios foram ao Palácio da Alvorada para uma reunião extra-agenda. Ao contrário do que ocorre normalmente, naquele dia foi permitida a entrada de fotógrafos na residência oficial do presidente para registrarem a presença do ex-piloto Emerson Fittipaldi em uma solenidade e, coincidentemente, ainda pegarem o ministro e seus auxiliares deixando o palácio sorridentes. Na versão do PFL, Fernando Henrique censurou as declarações de Mendonça de Barros. Em telefonema a ACM, o presidente teria repetido as mesmas críticas e prometido ainda que o governador de São Paulo, Mário Covas, daria um puxão de orelha no tucano brigão. "Não houve nada disso. É conversa do PFL, o presidente não fez nenhuma reclamação do Luiz Carlos", negou Covas.
Jogo duplo Na verdade, Fernando Henrique está fazendo seu habitual jogo duplo: estimula os tucanos a serem mais ousados ao mesmo tempo que se solidariza com os aliados incomodados com a postura mais agressiva do PSDB. Aos parceiros do PFL e do PMDB, FHC contou que foi contra o ingresso de Mendonça de Barros no comando tucano. Covas tem outra versão para essa história. Diz que a escolha do ex-ministro para a executiva do PSDB foi sacramentada numa conversa a três em que, além do governador paulista, estavam Fernando Henrique e Mendonça de Barros.
Outro fato que contribui para desfazer a impressão difundida pelo PFL de que Fernando Henrique está irritado com o ex-ministro é a troca de figurinhas entre Mendonça de Barros e o presidente do Banco Central, Armínio Fraga, estrela em ascensão no governo. Na mesma quarta-feira em que Malan e Parente foram chorar suas mágoas no Alvorada, Armínio e Mendonção tiveram uma longa conversa por telefone em que discutiram estratégias para a retomada do crescimento econômico. "Eles se dão muito bem", atesta o líder do PSDB na Câmara, deputado Aécio Neves (MG). "O Armínio é um craque. O Gustavo Franco (ex-presidente do BC) apenas reagia ao mercado. O Armínio, não. Ousado e profundo conhecedor do jogo, ele se antecipa ao mercado", completa. Aécio faz tabelinha com o ministro das Comunicações, Pimenta da Veiga, nas articulações para diminuir o poderio do PMDB e do PFL no governo. Bastou uma declaração de Pimenta em defesa de Mendonça para o líder do PMDB na Câmara, Geddel Vieira Lima (BA), que antes dizia nada ter a ver com isso, entrar na briga. Foi à tribuna dar apoio a Malan. "O Pimenta já descoordenou a área política do governo e está querendo agora descoordenar a economia", justificou.
Depois da encrenca causada por Mendonça de Barros, os líderes do PSDB estão evitando ataques públicos ao ministro da Fazenda. Mas ainda contam como certo que ele deixará o governo. Afinal, o trânsito de Armínio na comunidade financeira internacional torna Malan dispensável. Além do presidente do BC, outro personagem da área econômica está brilhando em Brasília. Em longo depoimento na quinta-feira 20 feito à CPI dos Bancos, o secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, expôs aos senadores todos os ralos por onde escoam bilhões de reais e que a equipe econômica mantém abertos. "Isso é um escândalo. Descobrimos hoje que o paraíso fiscal é aqui", reagiu o líder do PMDB no Senado, Jader Barbalho (PA), patrono da comissão. Se os senadores ficaram eufóricos, Malan e Parente não gostaram. Na manhã do dia seguinte, em conversa com assessores, o ministro da Fazenda não poupou críticas ao auxiliar. Parente, adversário de Everardo, fez mais. Foi ao Alvorada reclamar de seu desafeto. Quebrou a cara. A exemplo dos senadores, FHC também adorou o depoimento. "O Everardo agiu certo. A CPI está procurando distorções no sistema financeiro e o governo não pode ficar contra isso", disse o presidente a assessores. Para desagrado de Malan e Parente, Fernando Henrique pegou no telefone e deu os parabéns ao secretário da Receita. Como se também não tivesse sua cota de responsabilidade nessa evasão bilionária.
Manipulação O presidente gosta de alimentar esse jogo ambíguo. Ele se orgulha quando é comparado ao presidente Getúlio Vargas, um mestre na manipulação das forças políticas. No começo do seu primeiro mandato, FHC colocou José Serra no Ministério do Planejamento para fazer um contraponto ao time comandado por Malan. Mais tarde, repetiu a dose. Ao mesmo tempo que publicamente reafirmava seu apoio a Gustavo Franco, por baixo do pano estimulava Francisco Lopes a tirar o tapete do presidente do BC. O problema é que esse estilo funcionou bem enquanto o governo estava bem. Agora que está mal, os sinais contraditórios emitidos pelo Planalto só fazem aumentar a sensação de uma absoluta desarticulação do governo. Nesse clima, um simples treinamento de uma funcionária pública no Pará cria embaraços para o presidente. Na última quarta-feira, o governo entrou em polvorosa com a publicação no Diário Oficial de dois estranhos contratos sem licitação da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). Um autorizava o pagamento de R$ 500 mil a Pelé para fazer conferências sobre o futebol no mundo. O outro tratava da contratação por R$ 800 mil da cantora Elba Ramalho para animar a festa de aniversário do presidente da República. Eram fictícios. Foram copiados pela funcionária Keila Adriana Rodrigues de Jesus de uma cartilha preparada pela Secretaria de Administração e Patrimônio, chefiada por Cláudia Costin, para treinamento de servidores. O Planalto só tomou conhecimento do que havia sido publicado no D.O. depois que a oposição fez um escarcéu no Congresso. Sobrou para três subordinados de Costin que foram exonerados.
A trapalhada do Diário Oficial veio se somar à revoada de ministros em jatinhos da FAB para a ilha de Fernando de Noronha e virou mais um motivo de chacota. Não é à toa que a confiança no governo anda cada vez mais em baixa. Um exemplo disso é Malan. Apesar de todas as evidências, ele continua jurando que nada soube da operação de socorro ao Marka e ao FonteCindam. Na última semana, o deputado Vivaldo Barbosa (PDT-RJ) instalou duas urnas na Câmara para testar a credibilidade do ministro. Fez uma votação em que parlamentares, funcionários, jornalistas e visitantes responderam à pergunta se Malan sabia ou não sobre a ajuda aos dois bancos. O ministro perdeu de goleada. Dos 1.155 votantes, nada menos que 1.081 cravaram que Malan sabia.
Síndrome de Penélope
Afastado do Banco Central pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em janeiro, quando o mercado financeiro arrombava a âncora cambial do real, o economista Gustavo Franco não perdeu a chance de bater no próprio BC. Na primeira aparição pública desde a saída do governo, Franco desfiou críticas às decisões tomadas pela equipe econômica a que pertenceu por mais de cinco anos. Num seminário em São Paulo, na quinta-feira 20, o ex-presidente do BC lembrou que a desvalorização não trouxe os resultados propalados pelos críticos da sua política cambial. "A mudança não ajudou as exportações e a volatilidade do real não colabora para a tomada de decisões de investimentos", afirmou o professor da PUC do Rio. "As leis econômicas são implacáveis e impessoais. O custo da desvalorização é o agravamento do problema fiscal, onde já éramos frágeis." Nem Armínio Fraga, seu sucessor, foi poupado. "Fixar metas inflacionárias é algo que não dá certo", disparou. Na sua visão, era possível sustentar a sua política cambial ao longo deste ano. Minimizando o impacto das decisões do Congresso em reprovar a MP dos inativos e a do governador Itamar Franco em declarar moratória da dívida, Franco preferiu culpar o próprio governo federal. "Ele agiu sob a síndrome de Penélope, desfazia de noite o que tecia de dia", aludiu sobre a falta de esforço de FHC na área fiscal, especialmente depois do fracasso do Pacote 51.
Novas ameaças
Nos seus últimos encontros com empresários e políticos, o presidente Fernando Henrique tem comemorado a melhora dos indicadores econômicos. Mas FHC corre o risco de ter pouco tempo para curtir seu otimismo. Afinal, uma nova crise externa já bate à nossa porta. O problema é um iminente ajuste da economia americana, que crescia ano após ano sem produzir inflação nem gerar desemprego. O banco central de lá, o Federal Reserve Board, anunciou na semana passada que pode aumentar os juros para conter um surto inflacionário. Se isso ocorrer, espera-se uma queda significativa na Bolsa de Nova York, com repercussões sobre as economias da América Latina, da Ásia e do Leste europeu. O Brasil, agora com o câmbio livre, deve escapar de um ataque especulativo. Mas terá que recolocar os juros nas alturas para evitar que a consequente elevação do dólar pressione a inflação. Só um novo freio na economia controlaria os preços, já que outro pacote fiscal dificilmente passaria no Congresso. "O governo não tem mais força para um novo ajuste", avalia o deputado Antônio Kandir (PSDB-SP).
Além dos EUA, há uma ameaça mais próxima. A Argentina foi sacudida nos últimos dias por boatos de desvalorização do peso e renúncia do ministro da Economia, Roque Fernández. É que lá, 1999 é ano eleitoral. E o presidente Carlos Menem tem tido dificuldades para cumprir as metas fiscais impostas pelo FMI, que já ameaça suspender um empréstimo de US$ 2,8 bilhões. Para não mexer na taxa de câmbio e romper a paridade com o dólar que vem contendo a inflação, o governo local teria que impor uma recessão à economia. Mas Menem não está disposto a aumentar o desemprego em ano eleitoral. Para pôr mais lenha na fogueira, o ministro do Trabalho, Erman González, pediu demissão, na sexta-feira 21, depois que veio a público sua aposentadoria indevida de US$ 8 mil. "Se a Argentina desvalorizar a moeda ou produzir recessão, o Brasil vai exportar menos ainda. Isso alimentaria a desvalorização do real", prevê o economista-chefe do Banco BMC, Marcelo Allain.
Wladimir Gramacho