Em uma de suas crônicas esportivas, Nelson Rodrigues afirmou que o Brasil e o tênis eram incompatíveis. "O nosso povo não gosta de um esporte que exige uma torcida muda. Ele precisa do uivo, do gesto pornográfico e do berro ululante." Isso foi há mais de 30 anos, quando o tênis era bem diferente do atual e seus heróis ainda estavam longe de alcançar a projeção do catarinense Gustavo Kuerten, o Guga, 22 anos. Grande promessa do tênis brasileiro depois de vencer Roland Garros, na França, em 1997, Guga passou por muitos reveses. Amargou 14 meses de derrotas até voltar a ganhar um título, perdeu de adversários fracos, foi criticado por boa parte da imprensa e por um público ávido de resultados e pareceu que ia sucumbir à forte pressão do circuito. Felizmente, tudo isso já pertence ao passado. Na melhor fase de sua carreira, Guga promete ser o centro das atenções a partir desta segunda-feira 24, no mesmo torneio que o consagrou, diante de uma torcida que, ao contrário das previsões rodrigueanas, está aprendendo a apreciar as silenciosas trocas de bola.

Não foi só a platéia que aprendeu a vibrar em silêncio. A grande diferença entre o garotão de dois anos atrás e o atleta que venceu em Roma, há três semanas, é o domínio das emoções. Ao voltar a Roland Garros no ano passado, descontrolou-se a ponto de atirar a raquete em direção ao juiz, numa partida de duplas. Foi multado em US$ 7 mil. "Me cobrei demais, queria ganhar muitos jogos. Já entrava nos torneios estressado", explicaria na ocasião. Guga aprendeu a controlar a ansiedade. Um rosto mais sereno e determinado substituiu a tensão e as caretas que ele exibia nas quadras. "Não sinto diferença na parte técnica, mas mudei a maneira de pensar as jogadas. Eu me preparei para isso", disse ele na quinta-feira 20 ao receber ISTOÉ em Paris, gostosamente instalado num suéter de estilo marinheiro, tênis nos pés, mascando chicletes. "Achei que ia começar a ganhar tudo, mas estava apenas começando." A experiência acumulada o ajudou a desenvolver uma visão mais cautelosa de seu desempenho. "Tenho cuidado com as expectativas. É fácil tropeçar em um torneio como esse. Roland Garros é o torneio que eu mais gosto de jogar. Por isso, tenho de encarar cada partida como se fosse a partida da minha vida."

Uma série de motivos explica a nova firmeza de Guga. O próprio atleta dá a receita para essa nova fase: "Em 1998, joguei demais no início do ano e não soube priorizar a temporada de saibro. Cometi muitos erros dos quais só fui ter consciência este ano." Para o técnico Wilton Carvalho, o Batata, seu treinador em competições internacionais quando ele ainda era juvenil, a superação das turbulências deve-se à garra do jogador. "Uma vez, em Caracas, ele virou um jogo quase perdido depois que viu um torcedor acenando uma bandeira do Brasil", recorda Batata. O psicanalista Fernando Colli também vê na determinação de Guga um dos fundamentos do seu sucesso. "Ele pôs na cabeça desde pequeno que seria um tenista. Essa é a sua marca, sua identificação", afirma Colli. Suzi Fleury, especialista em psicologia esportiva e psicóloga da Seleção Brasileira de futebol, destaca a inteligência emocional de Guga. "Gerenciar as emoções é sinal de maturidade. Sentimentos como a raiva impulsionam uma reação, negativa ou positiva. Guga não tenta abafar suas emoções, mas sim usá-las em seu proveito", explica Suzi. A torcida, em outros tempos tão cobradora, também tem seu papel positivo. "Me sinto importante para os meus fãs e isso me ajuda a esquecer as derrotas, passar por cima e estipular novas metas", considera Guga.

 

Favorito – Kuerten Numero Uno estampava o diário esportivo francês L’Equipe na primeira página, na semana passada, numa referência à vitória em Roma. A manchete aponta o favoritismo de Guga – ou Gugá, como é chamado pelos franceses. Novamente na oitava posição do ranking mundial, a melhor colocação já alcançada por um brasileiro, ele é o tenista que mais venceu e mais faturou no mundo todo este ano. Desde o final de abril, ganhou dois importantes torneios. Para conquistar o título do aberto de Roma, teve de derrotar três dos dez melhores tenistas do mundo. Pouco antes, havia batido o chileno Marcelo Ríos, ex-número 1 e um especialista em saibro, no torneio de Montecarlo, em Mônaco. Desde o começo do ano, foram 28 vitórias e US$ 999.056 só em premiações. Esses resultados colocam Guga na mesma galeria de heróis como Pelé e Ayrton Senna e sustentam opiniões como a do australiano Patrick Rafter, derrotado pelo brasileiro na final de Roma. Para ele, Guga será o primeiro do mundo. É questão de tempo.

Roland Garros é um dos quatro torneios mais importantes do mundo. Os outros três são Wimbledon e os abertos da Austrália e dos Estados Unidos. Com a conquista do título em, 1997, Guga passou da 66ª colocação para o oitavo lugar no ranking. Para os especialistas, era visível que o tenista, um garotão de cabelos compridos e em desalinho, ainda tinha chão pela frente até se firmar como um dos top ten, o grupo dos dez melhores do ranking. O americano John McEnroe, uma das lendas vivas do tênis, comentou na ocasião: "Guga veio para ficar, mas vai ter de se preparar para lidar com a pressão quando voltar para o Brasil. Todos vão cobrar resultados e a pressão vai ser ainda maior porque os brasileiros nunca se destacaram no tênis." O ex-tenista e hoje empresário Luís Felipe Tavares, sócio da Koch Tavares, concorda: "Para o brasileiro, o atleta tem de matar um leão por dia. O que ninguém entende é que o tênis de hoje é muito competitivo", afirma Tavares. "No passado, quatro ou cinco dividiam os títulos. Hoje, há 100 jogadores em condições de vencer os grandes torneios."

 

Círculo íntimo – O técnico Larry Passos, um gaúcho bigodudo, foi fundamental na escalada de Guga. "Conheço-o desde pequeno. Quando tinha 14 anos, ensinei-lhe a correr porque já tinha quase o 1,91m de hoje e era um desengonçado", diverte-se Larry. Nas partidas, esconde-se na platéia para gritar instruções em meio aos aplausos, desafiando o regulamento. O tenista costuma dedicar-lhe suas conquistas. Quando venceu o torneio de Stuttgart, na Alemanha, no ano passado, deu a Larry o Mercedes CLK 230, de US$ 100 mil, que fazia parte do prêmio. "Sempre acreditei no Larry. Se ele não fosse capaz, não teria feito de mim um grande jogador", afirma Guga, rebatendo quem acha que Larry não é treinador para um top ten.

A família é outro ponto de apoio. A presença mais constante é a do irmão Rafael, mas a mãe e a avó são figuras-chave. Quando ele ganhou em Stuttgart, o juiz da prova chegou dirigindo o Mercedes do prêmio. No banco de trás, para surpresa de todos, estava a avó do tenista, dona Olga Schlosser, 77 anos. Foi ela quem patrocinou, por meio de sua tecelagem em Brusque (SC), as primeiras raquetadas do neto. Quando ele já era profissional, dona Olga estudava o jogo dos adversários pela televisão em busca de dicas para o neto. A mãe, Alice, fica nervosa. Quando vê os jogos em casa, não consegue parar em frente à televisão. Fica na cozinha fazendo chá e só aparece na hora dos aplausos. Na quarta-feira 19, dona Olga, Alice e Rafael embarcaram para Paris. "Esse não é o meu neto", implicou a avó, ao chegar, quando viu os cabelos raspados e descoloridos de Guga.

O caçula da família, Guilherme, 19 anos, que sofre de paralisia cerebral, ficou em Florianópolis com Dete, babá de Guga desde os seis meses de idade. O tênis está no sangue da família. O pai, Aldo, morreu de ataque cardíaco apitando um jogo em Curitiba, quando Guga tinha nove anos. Alice já foi campeã catarinense master de duplas. Rafael é professor de tênis e dirige uma academia montada pelo irmão, com um sócio. Além da família, Guga conta em Paris com a proximidade da modelo catarinense Vanessa Schultz, 19 anos, sua namorada há pouco mais de um ano. Ela o acompanhou nos dois dias de descanso no balneário de Biarritz, na costa atlântica francesa, depois do aberto de Roma. Com Vanessa, Larry e Jorge Salkeld, seu empresário, Guga jantou na semana passada no restaurante O’Brasil, no bairro de Saint-Germain des Prés, onde se reabasteceu de sambão e feijoada.

Até agora, a fortuna amealhada por Guga – quase US$ 3 milhões em prêmios, sem contar os patrocínios – rendeu uma casa na praia Brava e um apartamento na praia dos Ingleses, em Florianópolis, além de terrenos espalhados por Santa Catarina. O resto está em aplicações financeiras. Nos planos da família, está uma rede de academias com a griffe Guga. Mas o milionário Guga mantém os hábitos de quando era apenas um "mané da ilha", como são chamados os nascidos em Florianópolis. Em suas raras folgas, gosta de pegar onda, comer churrasco com os amigos e assistir aos jogos do Avaí, seu time do coração. Na quinta-feira 20, ele cantou num show em benefício da entidade Les Enfants de La Terre (As Crianças da Terra). Por ter um irmão portador de deficiência, Guga é um grande arrecadador de fundos. No ano passado, lançou a campanha "Guga e os amigos da Associação de Pais e Amigos de Excepcionais (Apae)." A cada partida, ele doa US$ 200 e, com o Banco Real, a Renault e a ATP, já conseguiu juntar US$ 55 mil em doações.

 

Gugamania Qualquer que seja o resultado de Roland Garros, Guga já garantiu seu lugar no pódio dos ídolos brasileiros e mostrou que tênis pode ser popular. O presidente da Confederação Brasileira de Tênis, Nelson Nástas, começou a receber pedidos de livros de regras do esporte depois da ascensão de Guga. "As pessoas querem torcer, mas não entendem o sistema de pontos", conta Nástas. Para Eduardo Menga, vice-presidente da ATP Tour para a América Latina, o tênis nacional vive seu melhor momento. "Todo esporte precisa de um ídolo. O Brasil já tem os seus", afirma Menga, que se refere também a Fernando Meligeni, 55º do ranking, em uma ótima fase. Em Montecarlo, ele venceu Tim Henman, sétimo do mundo, e em Roma bateu Pete Sampras, o segundo. A ATP criou, no ano passado, em São Paulo, o projeto Tênis na Escolas, coordenado pela ex-tenista Patrícia Medrado, para treinar professores de Educação Física e disseminar a prática em colégios estaduais. O projeto já atingiu 60 mil crianças.

Menga prevê que o público do tênis vai crescer mais, a partir do próximo ano, quando o sistema de colocação no ranking ficará mais simples. Hoje, são computados os 14 melhores resultados das últimas 52 semanas. Por esse sistema, o tenista com boa pontuação em um torneio deve manter o resultado no ano seguinte, ou perde os pontos que havia conseguido. Por isso, às vezes um jogador desce ou sobe no ranking por resultados alheios. A partir de 2000, prevalecerá a pontuação do ano. Se o sistema estivesse em vigor, Guga seria hoje o número 1 do mundo.

A mudança é uma exigência da ISL, empresa de marketing esportivo que controla a transmissão da Copa do Mundo de futebol, para facilitar o entendimento do público. A empresa e a ATP Tour firmaram um acordo de US$ 1,2 bilhão por dez anos, que começa a valer a partir do ano que vem. Pelo contrato, adquiriu o direito de transmitir e comercializar o tênis em todo o mundo. O número de competições será reduzido e os campeões serão obrigados a disputar os principais torneios. Os prêmios vão ser maiores e estudam-se maneiras de transmitir melhor a emoção das partidas. No Brasil, é a Koch Tavares que detém os direitos e os jogos são transmitidos pela Rede Manchete. Novos acordos no ano 2000 permitirão às tevês de maior audiência entrar na corrida. Para os brasileiros, a novidade mais aguardada é a transferência para o Rio ou São Paulo do campeonato mundial, disputado em Stuttgart, na Alemanha. "A América do Sul é hoje o mercado emergente do tênis", acredita Menga. Pelo visto, a exigência de silêncio e de boa conduta não vai afastar a ululante torcida verde-amarela desse esporte secular. Ainda mais com um ídolo como Guga.