04/04/2001 - 10:00
Os coquetéis comportados foram substituídos pelas festas psicodélicas em que todo mundo fazia amor e dançava até o amanhecer ao som de muito rock’n’roll. No lugar do preconceito, do conformismo e da propriedade, as palavras de ordem eram solidariedade, liberdade e partilha. A regra era abolir as regras. Em meio a guerras e à barbárie de ditaduras militares, acreditou-se que o mundo poderia ser melhor. Era necessário mudar a si mesmo e também criar uma sociedade alternativa, fundando novas comunidades onde tudo era de todos e tudo era permitido. O desbunde total foi deflagrado em San Francisco, Estados Unidos, no “verão do amor” de 1967, com o Monterey Pop Festival. Foi o primeiro de uma série de grandes happenings musicais. O auge foi Woodstock, em agosto de 1969. As estrelas desses eventos eram jovens de roupas coloridas e flores no cabelo que repudiavam a política, o dinheiro, pregavam a vida natural e a utopia do powerflower, as flores vencendo os canhões. Eles eram hippies – o rótulo deriva da palavra hip, que significa estar na moda –, sua atitude foi copiada no mundo todo e mudou definitivamente o comportamento da sociedade.
Os hippies queimaram sutiãs, inauguraram a pílula anticoncepcional e o divórcio, levaram as mulheres a competir no mercado de trabalho e os pais a educar seus filhos para aprederem a cuidar de si mesmos. Do uso exagerado das drogas como passaporte para a “iluminação” e “expansão da mente” ficou a imagem – popularizada pela mídia – de cabeludos “bobões” que só queriam fumar maconha e viver de brisa. O impacto dessas “viagens”, no entanto, foi devastador. Mesmo quem não participou diretamente do movimento incorporou valores e hábitos – o ideal de paz e amor, o cabelão, o incensozinho, os bordados, estampas indianas e sapatilhas que a moda volta e meia reedita a preços exorbitantes, a consciência ecológica, a alimentação natural, a valorização da cultura oriental (acupuntura, ioga, macrobiótica) e da espiritualidade.
A juventude, que ajuda a engrossar a audiência da novela global Estrela-guia – alavancada pela musa teen Sandy no papel de Cristal, líder angelical de uma comunidade alternativa no interior de Goiás –, talvez não saiba que deve aos hippies tudo isso. Com situações e personagens estereotipados, indumentária de butique, defesa moralista da ecologia e clima de fábula, a novela conseguiu banalizar o movimento mais importante do último século. “Ironicamente, ele teve mais consequências que a luta armada”, observa o escritor Luís Carlos Maciel, 63 anos, que mantinha no extinto jornal O Pasquim uma coluna sobre contracultura. A antropóloga Silvia Borelli, da PUC-São Paulo, aponta outros desdobramentos como o aparecimento das tribos e a segmentação de mercado. “Até os hippies, pensava-se a juventude como uma categoria universal que se dividia por faixa etária. A partir da década de 70, ser jovem podia significar um monte de coisas. Surgem os punks, os góticos, as patricinhas. A idéia da contracorrente também virou bem cultural. Aparecem o selo de disco independente e as feiras de produtos alternativos”, diz Silvia.
Problemas – Se naquela época ser hippie era um compromisso, hoje é uma opção. E hippies autênticos, como a colombiana Silvia Liliana Moreno, 34 anos, são cada vez mais raros. Ela tem orgulho em contar que sobreviveu sete meses sem um real no bolso. “Eu como o que a natureza oferece. Na época da manga, é só manga. Às vezes, passa alguém e deixa um pão integral”, diz. Depois de ter tido Clara Marina, dois anos e meio, – fruto de uma aventura em uma comunidade – Silvia tem preferido “polarizar” a transar. “É uma forma de trocar energia com massagens e toques. Quando você evolui, não precisa mais de sexo convencional”, explica Silvia, que vive na comunidade Frater, a cinco quilômetros da cidade goiana de Pirenópolis. Foi lá que a Globo se inspirou para produzir a novela Estrela-guia. A comunidade está praticamente abandonada. Tem dez moradores que plantam, dividem uma cozinha comunitária e vivem de artesanato. Como em outras sociedades alternativas à mingua pelo Brasil, o ideal de uma grande família foi superado por problemas mundanos de convivência. “Temos discordâncias básicas, com dinheiro, horário e o que plantar. Mais da metade não resiste e vai embora”, constata Luis Fernando Carneiro, 34 anos, de outra comunidade, a Omni, vizinha da Frater. Ex-funcionário da Receita Federal, casado e com dois filhos, Luís Fernando está mais para roceiro do que para hippie. Vive sem energia elétrica, cultiva sementes orgânicas e construiu um banheiro sem água, que chama de bazon. Uma camada de pó de serragem é jogada sobre as fezes para não poluir as nascentes.
Tema atual – Visconde de Mauá, no Estado do Rio, é outro celeiro de personagens alternativos. São hippies de estilo, de espírito, que optaram por viver longe da cidade e não se excitam com shopping centers. Mas o amor livre, as drogas pesadas e a ojeriza ao sistema agora só no cinema. Muitas comunidades evoluíram para organizações religiosas, como a Céu da Montanha, do Santo Daime. A mineira Míriam Machado, 34 anos, vive lá com o marido José Adilson, e os filhos, Mayra e Iamana. Eles nasceram de parto natural, dentro de casa. Os pais fazem artesanato para sobreviver e conseguiram comprar uma casa, um carro e uma loja. “Tudo o que queremos é ficar em paz”, diz Míriam. Lino Pereira, 57 anos, hoje também segura mais a onda. Depois de viver o desbunde intensamente quando era jovem, agora está casado no papel, dirige uma pousada com celular e televisão e luta pela preservação da natureza da Área de Proteção Ambiental da Mantiqueira. “Quem não viu no movimento um ritual de passagem continua na adolescência”, critica.
O sonho acabou em 1973, com a crise mundial do petróleo. “Os hippies tiveram que botar a mochila nas costas e voltar para a universidade ou procurar um emprego. Com a Aids também acabou a fantasia do ninguém é de ninguém”, constata a escritora Heloísa Buarque de Hollanda, autora do clássico Impressões de viagem, cultura e participação nos anos 60. Os temas que eles defendiam, no entanto, continuam atuais. A não-violência, a cooperação, a qualidade de vida. E a garotada que hoje curte o visual bicho-grilo – de butique ou não –, de uma forma ou de outra, continua se identificando com os hippies. “Em vez de fundar uma sociedade alternativa, queremos participar e mudar a nossa”, prega a estudante de ciências sociais da UFRJ Maria Paula, 21 anos, vestida com batas e colares de contas. Portanto, ainda vale a pena tentar.