05/05/1999 - 10:00
A má pontaria dos pilotos aliados tem feito com que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) atire contra o próprio pé. Os disparos já mataram refugiados kosovares no chamado "fogo amigo" e vários civis sérvios que deveriam ter sido poupados. Desestabilizam o governo pró-ocidental de Montenegro e agora extrapolam o cenário de guerra e caem nos subúrbios de Sófia, a capital da amiga Bulgária. Na terça-feira 27 um míssil guiado a laser errou o alvo em alojamentos militares na cidadezinha sérvia de Surdulica, demoliu várias residências, matou cerca de 20 pessoas – metade delas crianças – e feriu outras 70. No dia seguinte, o 37º de bombardeio na Iugoslávia, um míssil Harm lançado por um caça F-16CJ atravessou fronteiras internacionais e foi incinerar uma casa nos subúrbios de Sófia. Com isso, demoliu-se de vez a propalada imagem de precisão cirúrgica dos bombardeios, além de abalar seriamente o futuro político da campanha aliada contra Slobodan Milosevic.
O pior é que esta nem sequer é a primeira vez que petardos aliados explodem em território búlgaro. A diferença é que em duas outras oportunidades as bombas caíram em áreas desabitadas. Aviões da Otan também têm violado constantemente o espaço aéreo daquele país. Mas a destruição de uma residência no distrito de Gorna Banja, em Sófia, a cerca de 60 quilômetros a Leste da fronteira com a Iugoslávia, foi o acidente mais grave. O presidente Petar Stoyanov protestou formalmente e está demandando explicações, desculpas e indenização aos prejuízos sofridos por seus cidadãos. Este ressentimento justificado é mais uma baixa sofrida pelos aliados ocidentais em decorrência de sua péssima mira. Até então, o governo búlgaro se desdobrava para agradar à Otan. Durante as celebrações do cinquentenário da organização, no fim de semana passada em Washington, a Embaixada da Bulgária trabalhou em ritmo acelerado, com toda sua equipe de plantão. Tratava-se de um esforço de relações públicas do país visando a sua futura entrada na Otan, questão que está sendo votada no Parlamento. O jornal The New York Times publicou uma longa reportagem contando os pormenores curiosos deste trabalho de aproximação dos búlgaros. Dizem que na segunda-feira 26 depois dos festejos, o pessoal da embaixada estava exausto e esperançoso. Dois dias depois o míssil Harm demoliria o que fora pacientemente construído.
Racha A semana havia começado com novas esperanças de rachaduras no encouraçado do governo sérvio. O vice-primeiro-ministro iugoslavo, Vuk Draskovic, em entrevista para a emissora Studio B, controlada por seus aliados, criticou duramente a política de Milosevic. Exigiu que se parassem as mentiras sobre uma suposta campanha vitoriosa das tropas sérvias, reconheceu a superioridade militar da Otan e propôs uma volta às negociações. No dia seguinte, Draskovic seria demitido via fax, depois que a notícia de seu afastamento já circulava pela imprensa do país. O comando aliado, num paroxismo de otimismo, viu este imbróglio como sinal dos desentendimentos na liderança iugoslava. Esta análise reflete apenas os desejos da Otan, e não a realidade.
Vuk Draskovic é o escritor transformado em líder político de oposição. Ele capitaneou os protestos de 1996 e 1997 contra Milosevic e levou milhares de jovens para as ruas. Seu Partido da Renovação Sérvia – liberal, mas monarquista – ganhou as eleições municipais de Belgrado e assumiu a prefeitura da capital iugoslava. Em janeiro último, Draskovic mostrou nova face e foi cooptado por Milosevic. Ganhou três ministérios menores e o título de vice-primeiro ministro. "Quero demonstrar a união sérvia em tempos de crise e ao mesmo tempo mudar este governo trabalhando por dentro", declarou na época. A se acreditar nisto, suas manobras não deram certo. "Milosevic aproveitou os ataques da Otan para consolidar sua liderança interna. Draskovic percebeu que sua hora estava chegando e resolveu sair atirando. Desta forma, ele procura garantir seu posicionamento num futuro sem Milosevic", analisa Isuf Hajrizi, editor do jornal Illyria, da colônia kosovar albanesa em Nova York, e um informado analista da política balcânica. "Draskovic não passa de um espertalhão inconsequente que agora não tem mais influência nos acontecimentos", dispara Hajrizi.
Os aliados também perdiam campo político em outro front. Em Washington a Câmara dos Representantes aprovou por ampla margem – 203 a 164 – uma medida que procura obrigar o presidente a pedir aprovação do Congresso caso deseje usar tropas terrestres no conflito. "O presidente sempre insistiu que não tem intenção de empregar tropas terrestres no Kosovo. Assim, essa medida não faz muito sentido. É mais um ato simbólico do partidarismo republicano", disse o senador democrata Robert Torricelli, que tem tráfego privilegiado pelos corredores da Casa Branca. Mas o pior petardo contra o presidente seria detonado no final da sessão, quando uma proposta de apoio da Câmara à campanha aérea não conseguiu ser aprovada – houve um empate de 213 votos a favor e contra. O Senado já havia aprovado apoio semelhante anteriormente, mas entre os deputados o presidente Bill Clinton acabou virando alvo de "fogo amigo", com 26 democratas votando contra seu pedido de união nacional frente à crise nos Bálcãs.
Nem tudo em Washington, porém, se deve ao partidarismo anti-Clinton. A televisão mostrava no noticiário daquela noite o trágico drama humano provocado pelos mísseis disparados contra Surdulica, a cidadezinha de 11 mil habitantes ao Sul da Iugoslávia. Foram duas bombas guiadas a laser para o meio da população civil. Uma explosão abriu uma cratera na rua sem asfalto onde momentos antes garotos jogavam uma pelada. O outro projétil destruiu seis casas, matou famílias inteiras e deixou alguns tantos órfãos ou viúvos feridos. Crescia na opinião pública americana, e também dos outros países aliados, a idéia de que os esforços para salvar os civis kosovares estão causando mais infortúnios do que benefícios. Como diz a vox populi: as boas intenções pavimentam o inferno.