Os cães viraram um pesadelo nacional. Quase todos temem ser a próxima vítima ao dar de cara com um fila, um rotweiler ou um pit bull. As pessoas mudam de calçada e chegam a agredir os donos dos animais. A comoção é tanta que o ministro da Justiça, Renan Calheiros, anunciou medidas urgentes para conter a criação de pit bulls, fazendo eco a leis municipais, como a do Rio, que prevê a castração e a extinção da raça em dez anos. "O ataque desses cães já se tornou um caso de segurança pública", afirmou Calheiros. Seria mais exato dizer que o problema é de segurança e de saúde, já que ocorrem 400 mil casos, entre lesões leves e graves, por ano no País. E enquanto o ministro encaminhava o projeto de lei ao Congresso, a menos de 40 quilômetros dali, na cidade-satélite de Taguatinga, Wellington de Santana, 13 anos, era atacado por um fila ainda filhote. O garoto teve a bolsa escrotal rompida, além de ferimentos nas costas, nádegas e braço esquerdo. A polêmica sobre a erradicação do pit bull, que já era grande, ficou maior.

"O foco está errado. Temos que educar e punir os maus proprietários", alerta Wagmar de Souza, presidente do Clube Paulista do Pit Bull, que tem 18 cães dessa raça em casa. "A lei deve resolver a questão e não dar só uma satisfação à sociedade", defende. Shirley Atala, do Kenel Club de São Paulo reforça: "Antes de optar por uma medida drástica, temos que acabar com o cruzamento indiscriminado, o treinamento violento, os maus-tratos e as rinhas que mutilam e matam os animais." A ferocidade instintiva do animal é um dos pontos de discordância nessa polêmica, "Isso é folclore. Todos os terriers têm uma limitação de convívio com outros cães, mas só atacam pessoas quando há desvio de conduta", afirma o veterinário Walter Biazotto, que atende mais de mil cães dessa raça em sua clínica em São Paulo. "O pit bull é um cão de caça, não de guarda. Se o ladrão quiser, leva até o cão. Se ele for normal, é claro", completa. O "normal" é um animal bem tratado, que não apanhe, não leve choques e tem convívio social. A ferocidade resultaria do despreparo e da intenção do dono de fazer do animal uma arma. "Até um poodle pode virar uma fera. A diferença é que o pit bull é forte e tem grande resistência à dor, o que agrada a bandidos e traficantes", explica o veterinário carioca Alberto Frimer.

A adestradora In-Coelum Abreu, 42 anos, que prepara animais para programas televisivos, discorda. "Exterminar é justo. Eles surtam, são violentos e imprevisíveis", afirma. In-Coelum cuidou com carinho de um pit bull desde os oito meses e um dia ele a atacou. "Sorte que não acertou a mordida." O deputado estadual Carlos Minc (PT-RJ), autor do projeto carioca, vai mais longe. "Sempre defendi causas ambientais, mas esse cão é um Frankenstein de proveta que sofre de um espasmo nos dentes que não o deixa largar a vítima."

Apesar da fama de mau, o cachorro predileto de lutadores de jiu-jítsu também conquistou jovens esportistas e pacíficas donas de casa que se orgulham de ter um cão atleta, forte e resistente que, segundo eles, também sabe ser dócil e amoroso. Tanto que não hesitam se expor em defesa de seus animais. "Nas passeatas, no Rio e em São Paulo, pit bulls andavam ao lado de bebês, mas não faltou quem os chamasse de assassinos", conta Maria de Fátima de Almeida. Dona de Mister Red Pit, um cão mimado de dois anos que é a grande diversão de seus netos, ela acabou sendo agredida na rua por causa de seu "bebezão". "Um homem bateu em mim e nele com um pau. Fomos parar na polícia", conta ela que, bem-humorada, avisa aos mais exaltados: "Ele não é uma fera, mas a dona é e morde."

Paulo Fernando Leite Filho e seu cão são bons exemplos de que as aparências enganam. Lutador de jiu-jítsu e judô, Paulo, 20 anos, 1,72m de altura e 86 quilos de músculos. Nos braços, ostenta tatuagens de cães em luta e o seu, um pit bull, atende pelo nome de Hitler. Quem visse a dupla passeando em Copacabana jamais pensaria que sua única meta é aumentar a coleção de medalhas que decora o seu quarto e, ainda, que Hitler, apesar do nome, convive em harmonia com Tyger, um gato de nove anos. "Ele me acompanha na malhação, atravessa rios, nada. Nunca atacou ninguém", afirma o atleta, que tentou rebatizar o cão quando o ganhou há cinco anos.

Mas a má reputação do pit bull tem alguma razão de ser. A raça, não reconhecida internacionalmente, é produto do cruzamento de staffordshire terrier e bull terrier e foi criada para a luta com touros, diversão apreciada pelos ingleses no século XIX. Nos Estados Unidos, outras misturas deram origem ao american pit bull terrier, com cerca de 50 cm de altura e peso médio de 30 quilos. Um baixinho que assusta pelo poder de destruição de sua mordida: a pressão de seus dentes chega a 204 quilos. Usada clandestinamente em rinhas – no Brasil, as apostas chegam a R$ 10 mil –, a raça acabou sendo proibida em 27 países, entre eles a própria Inglaterra.

Porte de arma
O projeto de Renan Calheiros vai além de definir o pit bull como "raça potencialmente feroz" e determinar a sua esterilização e registro no Ministério da Agricultura. Calheiros, criticado por legislar e, o que é pior, sobre comportamento canino, abre brechas para enquadrar outras raças no conceito mas, felizmente, determina que condutas humanas tidas como desleixo – descuidar da criação do cão, irritar o animal ou conduzi-lo em lugar público sem coleira, focinheira, corrente, etc. – sejam crimes passíveis de pena de um a três anos de prisão, além de multas. A punição para a promoção de rinhas, a produção de apetrechos de treinamento para este fim e a omissão do veterinário, que deve chamar a polícia ao atender um cão ferido em rinhas, é de dois a quatro anos de detenção. Mas uma dúvida persiste: quem fiscalizará isso? E a quem denunciar? Leis municipais já existem e não funcionam.

Para os defensores do animal, é preciso mais do que controlar cães e proprietários. Deve-se preparar e educar quem quer ter um animal. Representantes de Kenel Clubes, do Conselho Regional de Medicina Veterinária de São Paulo e cinófilos de carteirinha propõem que a posse responsável transforme-se em lei. "Por que não criarmos um sistema de habilitação de posse?", questiona a advogada Mônica Grimaldi, especialista em legislação de animais e do meio ambiente e diretora jurídica da Associação Paulista de Rotweilers, sugerindo uma espécie de porte de arma. "O cão e o dono teriam números de registro e as infrações, multas muito altas," explica. Só maiores de 18 anos poderiam se habilitar, depois de fazer um curso sobre manejo, tratamento e necessidades do animal e prestar exames psicotécnicos. "A lei de extermínio pune os bons proprietários, que têm nome e endereço, e aumenta o preço do filhote no mercado negro. Quem faz rinhas já está na clandestinidade e não se importará em continuar", aponta.

Colaborou Eduardo Hollanda (DF)