22/10/2008 - 10:00
Governos são como aviões: ainda que o vôo apresente intempéries, sacolejos, desconfortos e turbulências, o verdadeiro risco está na partida e na chegada. Talvez os governos sejam piores que aviões porque neles a aterrissagem é ainda mais dramática que a decolagem. Portanto, quando as urnas do segundo turno das eleições municipais forem fechadas, às 17 horas do próximo domingo, dia 26 de outubro, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva estará iniciando o seu procedimento para pouso. É aquele instante silencioso em que viajantes experientes sentem a leve inclinação em direção à pista. Ainda existe muito tempo até o contato com o final da história, mas como tudo o que acontece a Lula, desde sua aparição como líder sindical na histórica greve da Scania, em 12 de maio de 1978, mesmo os mais sutis movimentos ganham importância extra.
O dia seguinte à eleição será o primeiro, em 30 anos, no qual Lula acordará sem o mais relevante símbolo da política: a expectativa de poder. E os políticos brasileiros acordarão sem o fator que durante 30 anos regeu nossas transformações: a expectativa do poder pessoal de Lula. Foi essa conjunção que o alçou, aos olhos do regime militar, ainda no período das greves do ABC, em um adversário mais empedernido que muitos dos inimigos históricos da ditadura como Miguel Arraes ou Ulysses Guimarães. Fundador e presidente do Partido dos Trabalhadores, soube manter, durante a campanha das Diretas-Já e o governo José Sarney, uma dicotomia em que era visto, pelo resto da oposição de então, ora como potencial aliado, ora como virtual adversário. Lula decolou do ABC com um teco-teco e aterrissou na Constituinte com um turboélice. Saiu da primeira eleição direta, em 1989, com um jato e agora, na cabine do Airbus A 319 de US$ 56 milhões, se prepara para fazer o pouso final com o qual entrará para a história.
Em dois anos, a política terá de viver sem Lula. Para muita gente pode parecer prematuro discutir a questão. Diante de um governo que ainda tem obras a entregar e uma crise mundial a atravessar, Lula terá muito poder pela frente. Obras e crises, no entanto, representam apenas prêmios ou riscos, como o céu de brigadeiro ou a pista molhada. Elas não mudam o instante da aproximação, definida pelo calendário eleitoral do próximo domingo. A partir de agora, os políticos iniciarão um processo de acomodação em volta dos prováveis presidenciáveis, cujos nomes e realizações aparecerão com destaque crescente na mídia. Os ataques ao governo deverão ganhar intensidade e muitos dos atuais defensores do presidente contemplarão esse processo em silêncio. Sem a expectativa de poder, o político, seja ele Lula ou qualquer outro, perde seu principal escudo. E muitos chegam ao final de mandato cercados de um pequeno número de fiéis aliados – por- tanto não é improvável que dentro de alguns meses a mídia acabe por identificar no Congresso um bloco dos chamados "lulistas".
O que obras e crises mudam é o grau de dificuldade do pouso – e, portanto, podem abreviar ou retardar essas mudanças políticas. Como aconteceu na partida, em 2003, na qual o desconhecimento da máquina pública resultou num início vacilante logo substituído pela correta trajetória da economia, a chegada em 2010 será mais suave ou brusca em função da habilidade do comandante. Não custa, portanto, redescobrir como fizeram seus antecessores:
A saída pela porta dos fundos – A decisão do general João Figueiredo de não apoiar a emenda que restabelecia a eleição direta para presidente, que acabou rejeitada em 25 de abril de 1984, aniquilou seu poder 23 meses antes do final do mandato. Na realidade, o vôo de Figueiredo perdeu o rumo muito antes, na hora em que cedeu à linha dura e se esquivou de punir os militares responsáveis pelo atentado do Riocentro, em 1º de maio de 1981. Deveria ter sido o presidente que fez a abertura. Virou o general que prolongou a ditadura. Deixou o Palácio do Planalto sem dar posse ao sucessor, saindo de carro pela porta da garagem.
No fim, a solidão – Na véspera de decretar o feriado bancário que permitiu a edição do Plano Collor, José Sarney passou a manhã com seu paletó bege manchado de café. No gabinete, o que deveria ser um simples cumprimento protocolar de cinco minutos com dois jornalistas virou uma longa conversa de quase duas horas na qual o presidente, solitário e sem audiências importantes, gastou o tempo rememorando os pontos positivos de seu governo. Dois dias depois saiu do Planalto para a Ilha do Curupu e de lá para ser candidato ao Senado pelo Amapá. Na pequena casa que alugou em Macapá, passou em claro a primeira noite. Ao lado da mulher, Marly, temia manifestações populares contra ele no alvorecer. Suspirou aliviado quando acordou com um grupo de mulheres que lhe foram agradecer pelo programa do leite. Sarney inventou a falácia de que a Constituição lhe dera seis anos de mandato, apesar de ter aprovado uma Constituinte que tudo podia, inclusive acabar com a República. Errou o pouso quando quis voar pelo quinto ano e pagou com a solidão do paletó manchado.
Adeus não é até logo – A péssima decolagem, com um plano econômico que confiscou a poupança e um Congresso tratado a pão e água, não poderiam ter resultado numa chegada tranqüila. Da arrogância de seus 43 anos, Fernando Collor imaginou que, após a abertura do processo de impeachment, o "adeus" na hora de subir no helicóptero que o levaria à Casa da Dinda seria um "até logo", voltando ao Planalto em outra eleição tão eletrizante quanto a de 1989. Mas, naquele 2 de outubro de 1992, o helicóptero partiu sem bilhete de volta.
A opção pela embaixada – Itamar Franco cometeu o grande equívoco de fazer do pouso um fim, um poder que decorria da falta de expectativa de usá-lo. Abriu a porta da renúncia como uma ameaça à classe política, o grande mal que jogaria o governo nos braços do PT e o País no despenhadeiro da ingovernabilidade. Encerrado o mandato que herdara do impeachment de Collor, perdeu a relevância que a crise lhe dera. Terminou amigalhando embaixadas com o sucessor.
Surfista de crise – De todos os presidentes do País, se alguém tem Ph.D em como terminar um governo, esse é FHC. Os quatro piores anos do real estão no seu segundo mandato, iniciado com uma maxidesvalorização da moeda, inflação em alta e desemprego elevado. E encerrado com um traumático racionamento de energia. Mas Fernando Henrique Cardoso evitou que as más notícias contaminassem sua autoridade. Um mês antes do final do mandato, despachou a adega e a mudança para um novo apartamento em São Paulo, onde criou um instituto. Já chegou a pagar de Imposto de Renda mais que o dobro do que recebia quando era presidente. Mas continua a sentir falta do helicóptero oficial e da piscina do Palácio da Alvorada.
Com os bons resultados econômicos e sociais de seu governo e a mais duradoura e alta popularidade do período da redemocratização, Lula se encaminha para um destino bem menos ingrato que o de seus antecessores. "A crise financeira atrapalha um pouco esse cenário, mas o presidente não vai sofrer a maldição de fim de mandato", diz o economista Ricardo Luiz Mendes Ribeiro, da MCM Consultores. "Eu diria que ele vai ter um retorno para o partido e ocupar um cargo de visibilidade", diz a cientista política Maria do Socorro Braga, da Universidade de São Paulo. "Pela sua idade, ele pode se candidatar em 2014." Voltar a ser uma expectativa de poder é ao mesmo tempo uma oportunidade e um risco para Lula. Ela pode preservar a atual coalizão de governo. Mas a ambição de um terceiro mandato, em 2014, certamente aumentará o tom da oposição – e, se ela ganhar a eleição, poderia devassar seu governo para desgastá-lo. Essa, portanto, é a mais importante das manobras para a aterrissagem que começa a partir de domingo.
Colaborou: Camila Pati