19/04/2013 - 21:53
SUPERSTICIOSO
Ele tem pedra e nota da sorte, só vai a jogos do Corinthians com a mesma
camisa e começa a escrever livro ou peça de teatro apenas no início do ano
Do alto do nono andar do prédio onde mora na zona oeste de São Paulo, o jornalista e escritor Marcelo Rubens Paiva ouve um grito de gol. Duelavam Barcelona e Paris Saint-Germain, jogo transmitido pela tevê. Fanático por futebol, ele logo comentou: “Como tem gente idiota que torce para o Barça, não? Detesto esse time!”
Paiva não se encolhe para colocar para fora o que o incomoda. Aos 53 anos, faz isso com o vigor do rock’n’roll que marcou a sua geração e até hoje faz ferver o seu sangue de descendente de italiano. Um dos últimos que o tiraram do sério, este mês, foi o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, ao nomear como secretário particular o advogado Ricardo Salles. Alinhado à extrema direita, ele, entre outras barbaridades, sugeriu não ter havido crimes durante a ditadura. Paiva, cujo pai, o ex-deputado federal Rubens Paiva, desapareceu após ser levado pelos militares em 1971, exigiu uma retratação e a discussão ecoou no País. Na entrevista a seguir, o escritor – autor, entre outras 11 obras, de “Feliz Ano Velho”, livro mais vendido na década de 1980 – foi além: “O Brasil vive uma crise de inteligência”, afirma ele. “Quanto mais petróleo o País descobre, mais burro fica.”
"A anistia é um entulho autoritário.
O (ex-presidente) Figueiredo mandou para
o Congresso uma lei do governo ditatorial
“O Facebook e o Twitter mostram que
existe uma parcela da sociedade muito
conservadora, que resultou em figuras
como o deputado Marco Feliciano"
Fotos: Bruno Fernandes/IstoÉ; Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr
Como vê o trabalho da Comissão da Verdade?
Não se entende o porquê de apenas dois anos de trabalho da comissão. Por que se tem de correr contra o relógio? Eu, na verdade, não sei para que serve essa comissão. Ela não é punitiva. A direita concordou com a comissão, desde que ela fosse com base na história e não uma comissão política. Que besteira é essa? Como você pode se livrar de seus ideais para fazer uma análise histórica, filosófica, literária? Impossível. E outra: a Comissão da Verdade vai contar a historinha do que aconteceu e ficará por isso mesmo?
A comissão o decepciona, então?
Desculpe a expressão grosseira, mas é uma comissão de um país de c. Enquanto na Argentina os caras põem ditador na cadeia e pedem para o Brasil extraditar o torturador (o argentino Claudio Vallejo, que era procurado por crimes praticados na ditadura portenha) do Tenório (Francisco Tenório Cerqueira Júnior, pianista brasileiro que teria sido torturado pelo argentino e desapareceu, em 1976, em Buenos Aires), o Brasil cria uma comissão que não vai punir e vai passar dois anos trabalhando para entregar um relatório. E daí? O que esse relatório implica em relação a direitos? Mesmo assim, acho que é uma comissão ousada, que chama o Delfim Netto – o braço do empresariado na ditadura – para falar da Fiesp, da participação dos empresários. Ela é interessante, mas…
Acredita que a revisão da Lei da Anistia poderia ajudar?
A Lei da Anistia é antidemocrática, precisa ser revista, é um entulho autoritário. Eu participei de passeata pela anistia. Só que o (ex-presidente João) Figueiredo mandou para o Congresso uma Lei da Anistia do governo ditatorial e ela foi aprovada. O Congresso não tinha oposição, ela era tolhida. Metade dela estava no exílio e a outra, morta. Os sindicatos estavam sob intervenção, o movimento estudantil começava a reconstruir as suas entidades. E assim veio a Lei da Anistia desse Congresso.
Há quem defenda que ela foi importante para pacificar o País.
Também já ouvi por aí que ela é uma lei democrática porque trouxe paz. Paz coisa nenhuma! Olha a tortura que rola até hoje nas cadeias, os abusos e crimes contra os direitos humanos no Brasil. Desculpe, mas a Comissão da Verdade é a prova de que o Brasil não sabe enxergar seus problemas de forma vertical, mas só da horizontal. A gente está lidando com a anistia e com os crimes da ditadura da mesma forma com que lidamos com os massacres indígenas, a escravidão, com Canudos. Falta coragem para lidar com os desvios históricos cometidos no Brasil.
O sr. exigiu desculpas do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, pela nomeação do secretário Ricardo Salles, que disse não ter havido crimes na ditadura. Houve alguma manifestação dele?
Nada! Eu espero que o PSDB reaja. Eu respeito a direita, que teve o sociólogo José Guilherme Merchior, um grande intelectual. Não se deve negar o direito de a direita pensar. Mas o que não pode é essa direita que deturpa a história, como o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, que diz não ter existido o Holocausto, e do Salles, que fala que não houve crimes na ditadura. O cara é um ignorante completo! E está sendo sustentado pelo Imposto de Renda que eu pago, já que é um secretário do governo do Estado. Pô, eu tenho o atestado de óbito do meu pai. Tá louco? Como não teve vítima da ditadura?
O que achou da reação do PSDB nesse caso?
O grupo do PSDB histórico fica indignado com esse cara e com o Alckmin. O Alckmin não combina com o PSDB, um partido do Alberto Goldman, que foi do PCB; do Serra e do Fernando Henrique, expulsos do Brasil; do Covas, que foi cassado. Eu já vi peessedebista lamentar o fato de se ter deixado criar o Alckmin. É bonita a história do PSBD, ligada às Diretas Já. Mas o que vai acontecer com o partido?
Acha que as redes sociais dão voz às minorias?
Interessante como o Facebook e o Twitter mostram a nós, que nos achávamos donos da verdade, que existe uma parcela da sociedade muito conservadora, ignorante, que não conhece história, teve uma ascensão social e resultou em figuras abomináveis como o deputado Marco Feliciano (PSC-SP). É assustador imaginar que ele é presidente de uma Comissão de Direitos Humanos.
As redes amplificam todo tipo de discurso.
Sim, como as declarações absurdas da Joelma, da Banda Calypso (que comparou homossexuais a viciados em drogas), ou frases de colunistas que comparam casamento gay ao casamento entre um homem e uma cabra. Lá, também se dá uma pecha de herói a um presidente do Supremo Tribunal Federal, como o Joaquim Barbosa, um cara completamente desequilibrado, que agride jornalista, juízes. O Brasil vive uma crise de inteligência. Quanto mais petróleo o País descobre, mais burro fica.
Já teve vontade de ter filhos?
Tive. Já engravidei uma namorada, mas ela não quis ter. Fiz uma coluna defendendo a descriminalização do aborto e me chamaram de assassino. Hoje, você fala no assunto e parece que está confessando o assassinato de uma criança. A sociedade brasileira está completamente atrasada em relação ao resto do mundo nesses assuntos de saúde pública, direitos humanos. Ter o direito de fazer um aborto em uma clínica decente é uma coisa tão evidente, óbvia, para mim. Mas em uma sociedade patriarcal, machista como a nossa, isso é reprimido, proibido, crime. O Brasil tem um lado difícil de entender. Não sei se por causa dessa comunidade católica numerosa – e, agora, incluindo esse grupo evangélico forte – ou se é o fato de sermos uma sociedade escravocrata.
O sr. irá oficializar o seu casamento. Quem tomou a iniciativa?
A ideia partiu de mim. Já fui casado antes e, agora, estou casado de novo há três anos (com a filósofa Sílvia Feola). Vai haver uma cerimônia, uma festinha, para a assinatura. Nenhum dos dois segue uma religião. Outro dia discutíamos se sou agnóstico ou ateu. Eu sou mais ateu, porque gosto de umbanda, frequento roda de candomblé, já segui o I Ching, já recebi bênção no Gantois. E também tenho superstições.
Quais?
Carrego na bolsa uma pedra da sorte; na carteira, uma nota da sorte. Tenho um colar de Xangô. Vou ao jogo do Corinthians com a mesma camisa. Se o Corinthians está perdendo, tenho um jeito de fazê-lo reverter o placar: eu paro de ver o jogo, vou para o computador, mas a minha mulher tem de ficar no quarto vendo a tevê, sem mudar de posição. É batata, o Corinthians vira o jogo. Tem mais: sempre começo a escrever um livro ou uma peça no início do ano. Toda a história que termino tem de ter a palavra “fim”. Talvez eu seja ateu, agnóstico e tenha toque!
Em 30 anos de carreira como escritor, o universo feminino foi pouco abordado. Por quê?
Sempre me incomodou o fato de não escrever bem sobre mulheres. Eu era acusado de ser um autor machista. Mas eu tenho quatro irmãs. A minha família é matriarcal. Quem manda em casa são as mulheres, sempre mandaram. Escrevi “Feliz Ano Velho” aos 22 anos, era um moleque. E eu queria entender um pouco mais sobre as mulheres para poder conquistá-las. Foi quando comecei a escrever para o teatro, construindo muitos personagens femininos, que apareceu o prazer de escrever por meio de personagens femininos. Mas erro, não acerto muito. Eu chuto bastante.
O sr. viveu mais tempo como cadeirante do que o contrário. Como foi essa passagem?
Vivi 33 anos como cadeirante e 20 como não cadeirante. Me acostumei rápido. Hoje, os cadeirantes se acostumam mais rápido porque a sociedade está mais preparada. Mas eu tive que militar muito. Outro dia, saí para pegar o metrô, mas acabei pegando o ônibus. Fico muito feliz que tenha o dedo da minha turma de deficientes, da minha militância, dentro dos ônibus. Estar em uma cadeira de rodas me fez ter o livro “Feliz Ano Velho” para escrever. Talvez eu nunca tivesse escrito nada se não estivesse assim.