08/12/1999 - 10:00
A noite de autógrafos marcando o lançamento do livro Conversas com João Carlos Martins (Editora Green Forest do Brasil, 196 págs., R$ 25), do americano David Dubal, foi no mínimo inusitada. Com os movimentos da mão direita prejudicados por um acidente, o pianista de 59 anos focalizado na longa entrevista não assinou os exemplares que lhe eram estendidos. Ditava as dedicatórias para que duas moças vistosas as escrevessem. O evento, no entanto, marcou uma espécie de reconciliação de Martins com o público e consigo mesmo, depois do famoso escândalo Pau-Brasil. Inocentado pela corte suprema, que julgou o caso como político e não criminal, João Carlos Martins espera agora ser novamente associado ao piano. E comemora. Um outro nome estrelado da música erudita nacional também tem motivos para festa. Ele é Arthur Moreira Lima, que nesta semana completa 50 anos de carreira com dois concertos na sexta-feira 10 e no sábado 11, no Theatro da Paz, em Belém, local onde fez sua estréia pública, ainda criança.
Ele tinha apenas nove anos. Nem a casa lotada intimidou aquele menino franzino, que tocou com desenvoltura obras de Bach, Beethoven e Mozart. O som dos aplausos foi uma emoção inesquecível e o deixou um tanto confuso em relação à carreira que deveria seguir. Se dependesse do pai, seu futuro já estaria traçado: iria cursar engenharia. Quis o destino que Arthur Moreira Lima, enveredasse pela nobreza da música. Hoje, aos 59 anos, com a cabeleira rala e “corpinho de 58”, o sempre irreverente Moreira Lima ostenta a posição de um dos mais reconhecidos pia-nistas clássicos do Brasil e do mundo. Foi premiado em diversas ocasiões, como no Concurso Chopin, em Varsóvia (1965), onde foi aplaudido de pé por 15 minutos, ou no Concurso Tchaikovsky (1970), em Moscou. “É raro um currículo desses mesmo para um pianista estrangeiro”, ufana-se, com razão. Pai de duas filhas do primeiro casamento (está no segundo) e avô de Francisco, pouco mais de um ano, Moreira Lima mantém o jeito despachado que o consagrou. Um de seus maiores prazeres continua sendo viajar pelo interior do País num caminhão decorado pelo artista plástico Glauco Rodrigues, no qual transporta seu piano de cauda.
Vida igualmente cheia de emoções, mas pontilhada de muitos incidentes, teve João Carlos Martins. A tal conversa com Dubal – autor de dois outros livros semelhantes com o pianista Vladimir Horowitz e o violinista Yehudi Menuhin – conta em detalhes a trajetória de Martins até ele entrar no mundo exclusivíssimo dos grandes pianistas. Afinal, sua Integral de Bach, um trabalho monumental iniciado em 1979 e terminado no final do ano passado, com 19 CDs trazendo a obra completa para piano de Johann Sebastian Bach (1685-1750), dois discos-bônus com gravações suas feitas entre os 9 e os 21 anos e Bach for Christmas o consagrou como o grande intérprete do compositor alemão. O livro é recheado de fatos curiosos e mundanidades como seus quatro casamentos. “Sou a Elizabeth Taylor do piano”, brinca. Entre outras histórias, fica-se sabendo que sua mãe, Alay, morta este ano, era espírita e antes dos concertos do filho, à época com nove anos, “recebia” o célebre pianista Fernando Busoni, que morreu em 1924.
Já adulto, João Carlos Martins conheceu a fama acompanhada de vários incidentes que poderiam ter acabado com sua carreira não fosse uma espantosa capacidade de recuperação. Em 1966, machucou o cotovelo numa partida de futebol no Central Park, em Nova York. No ano seguinte começou a sofrer da síndrome de movimentos repetitivos, parando de se apresentar em 1970 por causa da dor. Durante oito anos dedicou-se a atividades empresariais. Reestreou com grande sucesso em 1978, no Carnegie Hall nova-iorquino, mas oito anos depois, por questões pessoais, afastou-se outra vez do piano, retornando só em 1993 em respeito ao pai. Por outro desvio da sorte, em 1995 foi ferido num assalto em Sófia, Bulgária, ficando com o lado direito inteiro do corpo imobilizado.
Ao receber ISTOÉ no início da semana passada, o pianista estava exultante com a possibilidade de voltar a tocar mais uma vez. Poucos sabem, mas Martins gravou os três CDs que faltavam para completar a coleção Integral Bach, sentindo dores fortíssimas. É que o tratamento de reprogramação cerebral que ele fez em Miami, apesar dos avanços afetou o nervo cubital direito, que liga o cotovelo à munheca. Há um ano, sofreu uma operação para retirada do nervo. As dores cessaram, mas ele perdeu toda a movimentação do dedo indicador. “Se conseguir retomar meu ritmo e me exercitar até dez horas por dia, em três meses poderei tocar para amigos e em seis já estarei me apresentando em público”, otimiza. Munido de próteses nos dedos médio, anular e mínimo para evitar o esforço excessivo nesta primeira fase, Martins está praticando num piano mudo G. Schirmer, teclado sem cordas ou caixa acústica, com todas as características do verdadeiro, que pertenceu à pianista Guiomar Novaes. “Voltei a tocar a primeira vez por força de vontade, a segunda por esperança, a terceira já está sendo por teimosia, e a quarta, só de pensar, já é deboche.” O tipo de ironia tem um mestre, e dos bons. Há muitos anos, durante um jantar com a atriz Mia Farrow, João Carlos Martins ouviu de Salvador Dalí: “Comece a dizer que você é o maior intérprete de Bach, e em 30 anos o mundo vai acreditar em você.” Nem foi preciso. O público reconheceu.