São quilômetros de solo cinzento esturricado, exalando forte cheiro de enxofre. Em muitos trechos, o chão é coberto por cristais de sais minerais. A paisagem é lunar. Uma canoa abandonada, calcinada pelo sol, faz lembrar que há pouco tempo existia água em abundância na lagoa do Fidalgo, no semi-árido do Piauí. O drama da lagoa, que era uma das mais piscosas do Estado, começou em 1972. Um poço, com mil metros de profundidade, foi perfurado pelo Departamento Nacional de Pesquisas Minerais (DNPM) na cidade de São Miguel do Fidalgo, à época distrito da cidade de Paes Landim, próximo da lagoa. A água jorrou forte e entusiasmou os moradores da região. Poderia estar ali uma garantia de perenização dos rios e lagos da região durante as secas. A festa durou pouco. A água era quente, quase 50 graus. Para piorar, tinha sais de magnésio, cálcio e potássio em excesso e alto teor de enxofre, não servindo para consumo humano. Para irrigação, só com tratamento especial. O Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), que encomendara o serviço, mandou furar outro poço, tentando reduzir a pressão da água. Não adiantou. Os poços foram tapados, o que causou mais problemas. A água, vinda de um gigantesco lençol a quase mil metros de profundidade, rompeu o revestimento, se espalhou pelo solo e passou a jorrar, quente e malcheirosa, por toda a região. Os poços foram então reabertos, esguichando água até hoje.

O desastre ecológico só foi notado na seca de 1983, quando o nível de água da lagoa de 13 quilômetros de extensão baixou: mortandade de peixes, cágados e jacarés, água imprestável para o consumo e progressiva salinização da lagoa. “Na época, o susto foi grande. Mas, com o tempo e a volta das chuvas, o problema do vale do rio Fidalgo ficou esquecido”, recorda o deputado federal Wellington Dias (PT-PI), nascido na região. Novos períodos de seca nos últimos anos agravaram a situação: enquanto o rio praticamente secava, os poços continuaram a jorrar água sulfurosa. Este ano, depois de dois anos de seca, a lagoa, antes um oásis no meio do semi-árido do Piauí, secou de vez. Corrigir o desastre custa caro, mas é possível. Projeto elaborado há quatro anos pelo engenheiro especialista em barragens Norbelino de Carvalho prevê o uso da água do rio Piauí (onde deságua o rio Fidalgo) para encher a lagoa, diluindo os sais e o enxofre depositados desde 1972. A água seria captada no rio Piauí e bombeada, através de um canal, para as lagoas do Vasco e do Fidalgo. Uma barragem de 2,50 m de altura e 360 metros de largura seria feita na boca da lagoa do Fidalgo para reter a água. Na época das cheias, a água acumulada seria liberada rio abaixo. “Tudo custaria R$ 8 milhões e as 22 lagoas ao longo do rio Fidalgo voltariam a ser um oásis”, garante Norbelino. Quando o projeto foi apresentado em 1995, o governo do Piauí alegou não ter verbas e que a responsabilidade era do governo federal.

Poços e votos – Os problemas da água no Piauí não se resumem a desastres ecológicos. Na região do semi-árido, água é moeda de troca em eleições. Vale voto. Em Vera Mendes, município criado em 1996, com quatro mil habitantes e apenas R$ 60 mil de receita anual, um poço artesiano de 150 metros de profundidade, que atenderia à localidade do Barro Vermelho, foi fechado pela prefeitura, segundo os moradores, como represália aos poucos votos obtidos pelo então candidato Chico da Mata no local. Chico hoje é prefeito. “Foi vingança. Vieram escondido e encheram o poço de paus e pedras porque nós não votamos nele”, ataca João Raimundo de Souza, 67 anos. A briga deve ter um final feliz até julho, prazo máximo determinado pela Justiça para que a prefeitura desentupa o poço e libere o uso da água para os moradores da região. Na batalha pelos votos, nem obras feitas com dinheiro federal escapam da confusão. No povoado de Papagaio, zonal rural de Itainópolis, município vizinho a Vera Mendes, a Fundação Nacional de Saúde perfurou um poço, construiu caixa d’água e um chafariz com quatro torneiras. Tentando faturar a obra, o cacique político da região, José Maia, disse na inauguração que era “pagamento de promessas de campanha”. O líder da comunidade, Altino Evangelista Caminha, recusou-se a receber a chave da casa das bombas que operam o poço, porque a obra era da FNS e não da prefeitura. O poço só está funcionando porque o prefeito, José Maia Filho, fez um acordo com os moradores. De dois em dois dias, um funcionário da prefeitura vai ao povoado, a 20 quilômetros da cidade, para ligar a bomba e encher a caixa-d’água. “O Ministério da Saúde devia saber disso e dar a chave para nós”, reclama Pedro, filho de Altino Caminha. Já na cidade de Paes Landim, o ex-prefeito José Lira resolveu concorrer com a Agerpisa, companhia estadual de águas do Piauí. Com dinheiro público, perfurou um poço e construiu uma caixa-d’água no terreno de sua casa. A água é canalizada somente para as casas dos eleitores do ex-prefeito. Nem Lira nem a prefeita atual, Jideltina Maria Borges Mauriz, mulher de Josimar Mauriz da Silva, cunhado de Lira, se encontravam na cidade quando ISTOÉ esteve em Paes Landim. O diretório municipal do PT entrou com uma ação popular contra a prefeitura, pedindo que a água do ex-prefeito sirva a todos. A ação ainda não foi julgada.

Além das chicanas políticas, a guerra da água envolve muito dinheiro e grandes obras. A barragem de Pedra Redonda, no rio Canindé, por exemplo, iniciada em 1991, já consumiu R$ 22,527 milhões e não ficou pronta. A obra está na lista das consideradas irregulares pelo Tribunal de Contas da União (TCU), por superfaturamento. Neste ano, estava prevista no Orçamento uma verba de R$ 8,3 milhões, não liberada pelo governo. A obra está parada há um ano e a construtora responsável, Coesa, já encaminhou documento ao Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Crea) do Piauí eximindo-se de responsabilidade caso as chuvas que começam na região façam a barragem transbordar. Com a paralisação das obras, a barragem está dez metros mais baixa do que o projetado. O problema preocupa também a Diocese de Oeiras e Floriano, onde fica a cidade de Conceição do Canindé, local da barragem. O bispo Fernando Panico pede que a obra seja reiniciada para evitar uma tragédia na região. O TCU, mesmo alertando para o superfaturamento, recomenda a mesma providência ao governo federal, responsável pela obra através do Dnocs, órgão do Ministério do Meio Ambiente.