21/04/2004 - 10:00
Está vago o posto de dono da favela da Rocinha. Deposto a tiros de fuzis pela PM carioca, o traficante Luciano Barbosa da Silva, o Lulu, morreu na tarde de quarta-feira 14, depois de passar cinco anos ditando as leis em um dos maiores conglomerados de barracos do mundo. Seu poder tinha o tamanho da boca-de-fumo que controlava, a mais lucrativa do Estado, com faturamento estimado pela polícia em R$ 8 milhões por semana. A intimidação pelas armas era a base de seu domínio sobre a favela, mas Lulu era conhecido também pelas ações assistencialistas. Seu ocaso foi precipitado pela guerra que estourou na Sexta-Feira Santa, quando 70 homens, vindos de várias favelas e fortemente armados, tentaram tomar a Rocinha. O conflito se estendeu ao bairro nobre de São Conrado e cerca de 1,2 mil PMs foram mobilizados. Em seis dias, 12 pessoas morreram. Com a morte de Lulu, 25 anos, a grande expectativa no Rio era saber quem seria o novo dono da Rocinha. O absurdo da situação impõe uma pergunta desconcertante: por que o poder público não é cogitado como uma das alternativas pela população local?
A escalada de violência é um fenômeno nacional, como mostra a mais recente pesquisa do IBGE, divulgada quando o tiroteio atordoava o Brasil. O estudo revela que entre 1980 e 2000 foram assassinados quase 600 mil brasileiros e a mortalidade por homicídio cresceu 130% (leia mais à pág. 32). O País inteiro acompanha, perplexo, essa linha ascendente. Nesse contexto, a Rocinha chama a atenção para o vácuo de poder que faz do Brasil um território com número de mortos comparável ao de nações em guerra. Palco vistoso da miséria e da violência, as favelas sofrem este abandono há décadas. “Não temos saneamento, não há escolas suficientes, o desemprego é alto”, relaciona William de Oliveira, presidente da associação de moradores da Rocinha. Nas favelas, o quadro se torna mais dramático e gera um estado de exceção: os chefões do tráfico se firmam como única fonte de poder. E expandem suas ações criminosas para o asfalto.
Foi o que se viu na ação do bando que partiu do morro do Vidigal para destituir Lulu e tomar a favela mais famosa do Brasil. Liderada por Eduíno Araújo Filho, o Dudu, a quadrilha transformou uma das regiões mais ricas da cidade, São Conrado, em simples escala na ofensiva sangrenta pela conquista do território. Na avenida Niemeyer, a mineira Telma Veloso Pinto, 38 anos, assustada com o cerco dos bandidos, acelerou seu Citröen e morreu com um tiro de fuzil na cabeça na frente do marido e de três sobrinhos. Em outras ruas, traficantes e policiais se confrontaram na frente de condomínios de luxo. Na Rocinha, a babá Fabiana dos Santos Oliveira, 24 anos, e o campeão de skate Wellington da Silva, 27, foram mortos. “Acordei ao som de tiros e explosões, a luz foi cortada, o clima era de horror”, recorda Edu Casaes, universitário de 36 anos, morador da favela que atua na ONG Desatando os Nós do Rio. Os moradores ficaram ainda mais assustados com a possibilidade de Dudu, considerado sanguinário, assumir o trono. “O traficante morto era muito querido pela comunidade”, admitiu o coronel Jorge Braga, do 23º Batalhão da PM. “O outro é muito temido.”
Lulu era filho de Bernardino e Maria das Neves, evangélicos, e irmão do traficante Cassiano, morto há 16 anos. Passou a governar a Rocinha em 1999. Pelas ordens de uma organização criminosa, deveria passar o poder a Dudu assim que este saísse da prisão. Em janeiro deste ano, o criminoso obteve autorização para visitar a mãe e fugiu. Lulu desobedeceu e manteve o controle das bocas-de-fumo usando o mesmo sistema de corrupção dos antecessores, como revela, sem meias palavras, Luiz Eduardo Soares, ex-secretário nacional de Segurança Pública. “Eles dão dinheiro a policiais e compram armas deles.” Boa parte dos moradores torce para que os comparsas de Lulu consigam manter o comando. Tragicamente, nas vielas e nos becos ninguém aposta um centavo na hipótese de o poder público – em suas diversas instâncias – tomar conta da favela. “Lulu não se metia com o trabalho comunitário, deixava as ações sociais serem feitas livremente”, diz o presidente da associação de moradores, William de Oliveira. Sua morte provocou luto e comoção: o comércio da favela foi fechado e mais de dez ônibus levaram moradores ao enterro.
Retratos – O episódio abalou o País e foi destaque na imprensa internacional. As proporções da Rocinha justificam a repercussão: são 56 mil moradores, segundo o Censo 2000 do IBGE, ou 120 mil, pelas estimativas da Light. São 2.500 estabelecimentos comerciais, inclusive lanchonetes como Bob’s e bancos como Caixa Econômica Federal e Itaú. Em alguns pontos há casas amplas, de dois ou três andares, e até pequenos edifícios de sete andares. A Rocinha acabou ganhando fama de “favela classe média” – ou “bairro popular”, segundo o prefeito Cesar Maia. Para Edu Casaes, esse diferencial pode lustrar o ego, mas prejudica a comunidade: “Por isso a Rocinha perdeu muitos benefícios públicos.”
A pesquisa Mapa do Fim da Fome II, da Fundação Getúlio Vargas, confirma que é falso o status. O documento, divulgado na quinta-feira 15, mostra uma favela pobre, com baixa escolaridade (27,07% não têm instrução ou estudaram menos de um ano) e uma das menores rendas da cidade (R$ 434). Em média, os moradores estudam quatro anos e 22% são considerados miseráveis – com renda mensal inferior a R$ 79. A jornada de trabalho é de cinco horas semanais a mais do que as de outros bairros e seus trabalhadores ganham menos, apenas R$ 2,14 por hora, enquanto a classe média recebe R$ 15,18. Só um tema reúne num mesmo patamar os favelados e os habitantes de confortáveis prédios do asfalto: o medo.
Enquanto no Brasil 48% dizem ter medo da violência, no Rio essa angústia atormenta 56% da população, segundo o estudo Índice do Medo, feito em 2002 pelo instituto de pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, o FGV Opinião. O curioso é que a cidade está apenas em oitavo lugar entre as capitais. Em São Paulo, Porto Alegre e Salvador, o número de pessoas que disseram temer a violência chega a 62%. Alguns itens determinam o grau maior ou menor do medo, como a região, o tamanho da cidade e o fato de morar perto ou dentro das favelas. Os habitantes da Rocinha, sob o risco constante de balas perdidas, têm todos os motivos para pânico. Moradores contam que, na noite de sexta-feira, traficantes arrancavam crianças de suas casas e as forçavam a pegar em armas contra o bando rival, entre outras atrocidades.
O traficante Lulu morto e sua mansão dominada: a história se repete
Síndrome do pânico – Os cariocas do asfalto também experimentaram o pavor que faz parte da rotina do morro. Milhares foram impedidos, pelo tiroteio, de transitar entre a zona sul e a Barra, dormindo em casas de amigos e parentes e até motéis. O medo não acabou com a ocupação da favela pela polícia. A atriz Cássia Kiss, moradora da Barra da Tijuca e grávida de nove meses, montou um plano B para dar à luz seu quarto filho. “Estou no fim da gravidez e meu drama atual é saber que terei de passar perto da Rocinha para ir à maternidade”, diz. Como o trajeto para a zona sul beira a Rocinha, ela mudou o parto para a Barra. A designer de jóias Carla Amorim cancelou o superdesfile no São Conrado Fashion Mall que lançaria a nova coleção de sua grife. Vai procurar um endereço mais seguro. “O Rio é a cidade-foco da moda.”
A riqueza dos bairros mais próximos – Gávea, São Conrado, Joá e Barra – torna mais visíveis as carências da Rocinha. O cearense Osmar de Souza Lima, 26 anos, mora em um barraco de um quarto e não dispõe de saneamento, como 60% da Rocinha. A taxa de mortalidade infantil é cinco vezes maior do que nos bairros nobres ao redor. Osmar cria um filho de dois anos que passou a última semana sem ir à creche por causa da guerra. Sua mulher, cozinheira em São Conrado, passou a voltar para casa antes do anoitecer. Analfabeto como 20% dos vizinhos, o rapaz trabalha como pedreiro e tem uma renda familiar em torno dos cinco salários mínimos.
Um dos empregadores de Osmar é o empresário Luiz Fernando Gabaglia
Penna, 59 anos, que tem uma renda familiar superior a 200 salários mínimos
e vive em uma casa de dois andares e cinco quartos. A casa de Osmar é avaliada em R$ 20 mil, valor ínfimo se comparado ao padrão da vizinhança de São Conrado, que inclui o prefeito Cesar Maia, o ministro da Cultura, Gilberto Gil, o ministro do STF Ilmar Galvão e a cantora Simone. Os apartamentos e casas da região, não raro, custam mais de US$ 1 milhão. A proximidade da opulência torna ainda mais claras as carências da Rocinha.
Ignorada pelas autoridades em dias normais, quando as ações sociais
poderiam ser postas em prática de forma pacífica, a Rocinha só virou tema
de debate político com a guerra deflagrada. A primeira – e infeliz – manifestação
foi do vice-governador Luiz Paulo Conde. Enquanto traficantes e policiais faziam vítimas fatais, Conde sugeriu a construção de um muro para delimitar o avanço da favela. Uma chuva de críticas o fez recuar. Já o secretário estadual de Segurança Pública, Anthony Garotinho, encaminhou ao ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, o pedido de quatro mil homens das Forças Armadas, depois que o ministro ofereceu ajuda. “Não podemos fazer uma desfeita com o governo federal”, comentou em tom irônico. Thomaz Bastos respondeu que só enviaria tropas diante da perda de controle ou sério risco para a ordem pública. No início de 2003, o ministro prometera uma colaboração efetiva com o Rio e a rápida construção de presídios federais. Nada foi feito.
Além dos partidos – Para Jaqueline Muniz, ex-diretora da Secretaria Nacional de Segurança Pública, falta espírito público: “É preciso superar a partidarização. Segurança pública depende da ação conjunta, não pode ser bloco do eu sozinho.” Ela reconhece que boas idéias já foram aventadas, mas sempre desarticuladas e projetadas em situações de crise. “Temos de superar a noção de que segurança pública é igual a presença policial”, afirma. A ação eficaz, para ela, passa pela cooperação entre os poderes, descentralização e participação da sociedade. “Os entraves são mais políticos do que de recursos”, acentua. A briga entre o governo estadual, a quem cabe o policiamento, e o federal, responsável pelas fronteiras por onde passaram as armas e drogas de Lulu e Dudu, amplia o espaço do poder paralelo. A solução deste impasse talvez devolva à população a esperança de que o poder público finalmente exerça o poder hoje disputado pelas quadrilhas em lugares como a Rocinha. Sem precisar construir muros.
Vítimas: Osmar Lima, Carla Amorim, Cássia Kiss e Edu Casaes – classes sociais diferentes, mas o mesmo medo da violência