07/04/2004 - 10:00
Os olhos são pequenos, quase puxados, pressionados pelas bolsas e pálpebra que teimam em evidenciar o passar dos anos. Mas a vivacidade impressiona na escritora Nélida Piñon, que injeta vigor de iniciante à maturidade de seus 66 anos e 16 livros publicados. Em Vozes do deserto (Record, 352 páginas, R$ 34,90), seu lançamento recente, Nélida conta com sua habitual ousadia a envolvente saga de Scherezade, a princesa árabe que salva da morte as donzelas do reino de Bagdá. Mas engana-se quem espera encontrar erudição. “Meu romance ficaria liquidado se fosse erudito”, explica a autora, que levou cinco anos no árduo trabalho de derrotar seu próprio saber e fez mais de dez versões até chegar à forma final. Seu texto é como uma onda surfada com prazer pelo leitor. Nélida presta uma homenagem à narrativa, desfiada com ritmo e ambientada na fantástica atmosfera de As mil e uma noites.
Pela sua forte imaginação, Scherezade consegue se manter viva ao fim de cada encontro sexual com uma história irresistível. Apesar de o califa ter decidido sacrificar todas as jovens que passassem por seu leito, para se vingar da traição da sultana. São cópulas recheadas de erotismo, despojadas de sedução e sentimentos. “É um embate entre a tirania e a imaginação”, sintetiza a escritora, dando pistas de uma das várias interpretações que o texto pode sugerir. Impressiona a rica carpintaria que conduz o leitor ao cenário de uma Bagdá que já foi um importante centro cultural. Alguns trechos são uma viagem à cultura árabe. “Li o
Corão
durante minha formação acadêmica. É dificílimo, porque não é o profeta Maomé quem fala, mas o próprio Deus, que exige a submissão à sua vontade”, ilustra a primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras.