31/03/2004 - 10:00
Ele dobrou o salário mínimo, recebeu o legado do mito Getúlio Vargas, aproximou o Brasil da China, governou no parlamentarismo e no presidencialismo, impôs à agenda nacional a reforma agrária e o limite de remessa de lucro das multinacionais e, derrubado pela última das ditaduras, foi o único presidente a morrer no exílio. Só os detalhes explosivos da biografia do gaúcho João Belchior Marques Goulart já seriam suficientes para alçá-lo à galeria das grandes figuras do País, batizar praças e ocupar espaços nobres nos livros de história. Em 4 de abril de 1964, no entanto, Jango partiu para o esquecimento. Deixou como última herança para o imaginário popular as fotografias ao lado da bela Maria Thereza, no comício da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, quando elevou a temperatura política ao grau máximo ao reforçar a promessa das reformas de base. Em 1976, na Argentina, morreria nos braços da primeira-dama desterrada, que o povo comparava a Jacqueline Kennedy e a revista People incluiu entre as dez mais bonitas do mundo. Vinte e oito anos depois de sua morte e quatro décadas após o golpe que apeou o fazendeiro-sindicalista do poder, observadores da política ainda se debruçam sobre um dos enigmas da República: por que a figura de João Goulart é tão esmaecida? Por que Jango foi esquecido?
“Não há ruas com o nome dele e as aulas de história nem citam meu pai. É a minha mágoa”, desabafa a filha, Denise Goulart, na sala do apartamento onde as fotos de Jango e Maria Thereza disputam as atenções com a vista da lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. Denise tinha cinco anos quando deixou a Granja do Torto com a mãe e o irmão João Vicente, seis anos, num bimotor rumo ao Sul e ao exílio que mudaria para sempre a vida da família. A pesquisadora Maria Celina D’Araújo, do Centro de Pesquisa e Documentação (CPDoc) da Fundação Getúlio Vargas, diz que o nome de Jango caiu em desuso por encabeçar a lista dos “malditos” de um regime que censurava tudo. “Alguns nomes foram resgatados, mas o dele, não. O cunhado (Leonel Brizola) bem que tentou resgatá-lo, mas também é meio maldito na história oficial”, compara. O diretor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), Fabiano dos Santos, é incisivo: “Poucos teriam essa capacidade naqueles tempos, mas o fato é que ele não produziu resultados administrativos nem políticos tangíveis para ser lembrado.”
Não são raros os casos de presidentes depostos e execrados por suas nações. Geralmente são mandatários que envergonham os compatriotas pela corrupção ou atrocidades. Decididamente, não foi o caso de Jango. Uma das frases mais conhecidas no eterno debate sobre seus vícios e virtudes é de seu ministro da Casa Civil, Darcy Ribeiro: “Caiu pelas virtudes, não pelos defeitos.” Jango teria perdido o cargo por não recuar do ideal de distribuir renda, fortalecer a economia nacional e reformar a educação. “Se fosse fraco, não teria caído. Teria aceito a exigência dos golpistas para dissolver a CGT e a UNE, prender os dirigentes sindicais, romper relações com Cuba”, reforça o doutor em ciências políticas Luiz Alberto Moniz Bandeira, autor de O governo João Goulart – as lutas sociais no Brasil, 1961-1964 (Ed. Revan). O fato é que Jango não conseguiu impedir o golpe de 1º de abril de 1964, que condenou as gerações seguintes ao que o controlador-geral da República do governo Lula, Waldir Pires, classifica como “lavagem cerebral”.
“O Brasil vai reverter essa lavagem cerebral e Jango será lembrado como o primeiro que tentou democratizar o poder, a renda e a terra”, vislumbra Waldir, consultor-geral de Jango e autor da última mensagem ao Congresso, na noite de 1º de abril. Ele a redigiu e Darcy Ribeiro a assinou, desmentindo a informação de que o presidente abandonara o País – quando, na verdade, estava no Sul, analisando com Brizola a hipótese de resistir. Às 2h do dia 2, o presidente do Congresso, Auro de Moura Andrade, declarou vaga a Presidência, desligou os microfones e saiu do plenário, não sem antes ser agarrado e esbofeteado por outro parlamentar.
Waldir Pires, que se exilou no Uruguai e na França, era mais do que um assessor. Nas diversas cartas que escrevia a Jango, convidava o amigo a passear pela Europa, exortava-o a cuidar da saúde e tratava de política. Numa delas, elogia Jango pela recusa em integrar a Frente Ampla com Carlos Lacerda e Juscelino Kubitschek. “A fisionomia que o senhor tem no processo brasileiro o impede, sem dúvida, de atitudes semelhantes, seja às do Lacerda, seja às do Juscelino”, escreveu Waldir em dezembro de 1966. Mas Jango acabaria aderindo à frente, agravando o atrito com Brizola. A Frente Ampla não resistiu à tenebrosa repressão de 1968 nem à ausência de líderes como Miguel Arraes, exilado na Argélia, e Brizola. Mesmo confinado no Uruguai, Brizola articulava uma insurreição de setores militares com o apoio de contingentes civis e o uso dos meios de comunicação.