Aos 69 anos e com mais de meio século de militância no Partido Comunista Brasileiro, o pernambucano Givaldo Siqueira reagiu com revolta às graves acusações que companheiros da luta contra a ditadura dispararam contra ele. Na reportagem “Traição e Extermínio”, publicada na última edição de ISTOÉ, Siqueira é apontado por ex-dirigentes do partido como agente infiltrado que teria possibilitado a captura de pelo menos três correligionários. “Contra nós, o regime agia de duas formas: ou matava e torturava, ou jogava um contra o outro. É o papel que esses que me acusam estão fazendo”, afirma. Indignado, o dirigente do PCB vai processar Hércules Corrêa, Fernando Cristino e Miguel Baptista por calúnia e difamação. “Eu e minha mulher tivemos uma vida difícil, cheia de privações, fomos perseguidos. Da noite para o dia, tentam transformar o marido dela em cúmplice da repressão.” Julia, que vive com ele há 52 anos, reclama: “Não basta o que a ditadura nos causou, agora aparecem esses pobres diabos querendo destruir a nossa alma?” Aos episódios narrados pelos acusadores, Siqueira contrapõe versões bem diferentes:

ISTOÉ – Como o sr. recebeu as declarações de ex-companheiros que o acusam de ter agido como agente infiltrado no PCB?
Givaldo Siqueira –
Acho absurdo que o PCB apareça agora como um bando de traidores infiltrados, e não de uma força fundamental na luta contra a ditadura, o partido que formulou a política que derrotou o regime. O comitê na Guanabara, identificado como problemático, foi o único em que venceu a tese da luta pelas liberdades democráticas, contra o aventureirismo, o golpismo. Hércules Corrêa foi um dirigente importante, de origem operária. Trabalhamos juntos desde 1960. Sempre achei que ele não tinha muito bom caráter e agora comprovou isso. Mas foi importante na luta. Quando estava no partido jamais levantou dúvida sobre mim. Deve estar muito doente, a diabetes afeta a pessoa. Estou processando por calúnia e difamação a ele, ao Fernando Cristino e ao Miguel Baptista. Estão fazendo um papel miserável. A ditadura nos perseguiu, prendeu alguns, quando não destruiu moralmente ou fisicamente. Agora, completa o serviço através dos ex-comunistas que querem destruir os outros. Até o herói do partido, o Elson Costa, uma pessoa formidável, morto pela ditadura, vira suspeito de estar vivo e ser traidor. Não basta os caras terem o corpo do sujeito, querem a alma.

ISTOÉ – O sr. deu a ordem para que Célio Guedes, que acabou torturado e morto, fosse ao Uruguai receber um companheiro, mesmo sob risco?
Siqueira –
Quem deu a orientação para o Célio buscar o Fuad Saad foi a executiva do PCB, com a presença do Hércules. Ele (Saad) estava voltando ao Brasil pelo Uruguai e era preciso transmitir-lhe que a maioria das pessoas do seu aparelho estava presa. Enquanto Célio aguardava o Saad, outros caíram. O agravamento da situação foi informado ao Célio. Não teve carta dizendo por onde Saad deveria entrar. Na minha presença, Dinarco Reis disse ao Célio que não atravessasse para o Uruguai, mas ele resolveu ir. Os acusadores não sabem que Salomão Malina e Wilson Miranda orientaram um companheiro da fronteira para pegar o Saad, mas o Célio fez questão de cumprir a tarefa. O Wilson está vivo para confirmar.

ISTOÉ – O transporte de David Capistrano, capturado pelo DOI, foi autorizado
pelo sr.?
Siqueira –
O David voltou de Praga e chegou à fronteira, em Uruguaiana. Cheio de bagagens, contatou um companheiro que tinha ordem de só atravessar pessoas com uma só mala. David insistiu, o rapaz foi a São Paulo falar comigo e eu disse que não era seguro atravessar naquele momento. Orientamos o Orlando Bonfim, que estava indo para o Exterior, para encontrar o David e propor uma viagem a Buenos Aires. Depois, providenciaríamos o retorno dele. Não sei o que aconteceu, mas o fato é que o David e o militante José Roman atravessaram para o Brasil. Foi uma operação malfeita. Há uma responsabilidade coletiva, porque o partido trabalhou a questão da segurança de forma relaxada. Provavelmente, houve também algum desleixo pessoal.

ISTOÉ – E quanto à acusação de Miguel Baptista de que o sr. seria o encapuzado que estava na sala onde ele sofreu tortura?
Siqueira –
É uma coisa ridícula, absurda. Ele diz que ia saindo de uma sessão de tortura, tinha um cara encapuzado que disse: “Fala, meu filho!” Pelos gestos, achava que era eu. É simples de raciocinar: se a polícia tivesse um cara do meu nível infiltrado não iria usar para desmascarar um caseiro, um motorista. O que deve ter acontecido? O Miguel deve ter jurado que não ia falar, chegou lá e não manteve esse juramento. Ele não é miserável nem traidor por causa disso, o responsável é a ditadura. Ele caiu inclusive porque violou uma orientação minha.

Cartas – A matéria “Traição e Extermínio” suscitou intensa discussão entre os leitores de ISTOÉ, que pode ser acompanhada na seção de cartas (a partir da pág. 12). Entre outras mensagens recebidas está a de Marival Chaves, ex-sargento do DOI, sustentando que Givaldo era agente infiltrado e agia sob orientação do Centro de Informações da Marinha, o Cenimar. Em repúdio às acusações a Givaldo Siqueira, um grupo de pessoas que militaram contra a ditadura reconheceu sua “dedicação” e seu “passado de lutas” no PCB e enviou um abaixo-assinado com a chancela de personalidades como José Serra, Alberto Goldman, Aluísio Nunes Ferreira, Elio Gaspari, Ferreira Gullar, Juca Kfouri, Luiz Mário Gazzaneo, entre outros.