07/04/2004 - 10:00
“O militar-político é uma espécie de lobisomem, um homem de existência dupla e misteriosa, que mete medo.” A sentença, uma veemente condenação ao envolvimento dos militares na política, fora escrita no longínquo ano de 1933 por um certo “Coronel Y”, na extinta Gazeta do Rio. O principal alvo dos artigos eram os tenentes, militares idealistas e rebeldes que infernizaram a vida da oligarquia nos últimos anos da República Velha e chegaram ao poder com a Revolução de 1930, sob Getúlio Vargas. O “Coronel Y” era na verdade o pseudônimo de um brilhante capitão do Exército, legalista até o último fio de cabelo. A sentença se revelaria profética 30 anos depois, quando aquele capitão legalista, então chefe do Estado-Maior do Exército, se tornou um dos líderes da conspiração de direita que depôs o presidente João Goulart, em 1º de abril de 1964. Esse oficial profissional e erudito se tornaria o primeiro dos cinco generais-presidentes (lobisomens?) do regime militar: Humberto de Alencar Castello Branco.
O golpe, desfechado sob o pretexto de impedir o estabelecimento de uma
“ditadura sindicalista”, abriu o caminho para uma ditadura militar de fato. No
poder, o antigo oficial legalista esquartejou a Constituição através de Atos Institucionais que promoveram a caça às bruxas, cassaram mandatos, fecharam o Congresso, intervieram em universidades, extinguiram partidos, cancelaram eleições e fizeram a tortura prosperar. No fim, a anarquia que os militares tanto temiam estava instalada nos quartéis e no poder. “Castello fracassou no seu projeto pessoal e político. O estrategista brilhante foi derrotado pela sargentada da linha dura, liderada pelo ministro da Guerra, general Costa e Silva. Castello assumiu prometendo entregar o poder ao sucessor civil a ser eleito em 1965, quando terminava o mandato do Jango, e acabou primeiro, prorrogando seu mandato; depois, com o AI-2, tornou as eleições presidenciais indiretas e aceitou a imposição da candidatura dos quartéis. O jogador de pôquer (Costa e Silva) venceu o estrategista”, afirma o jornalista Lira Neto, autor do récem-lançado Castello – a marcha para a ditadura (Editora Contexto, 429 páginas).
Embora seja uma biografia política, o livro de Lira Neto revela os bastidores dos palácios e dos quartéis do período de 1920 a 1964. “São os grandes fatos grandes da história política recente do Brasil contados através da trajetória de um personagem, Castello, entrelaçado neles”, diz Lira Neto. Para elaborar a biografia, além do acervo pessoal do ex-presidente, que está sob a guarda da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), no Rio de Janeiro, o jornalista
contou com um presente recebido do brasilianista John Foster Dulles: “No final dos anos 60, ele fez dois livros sobre Castello, uma espécie de biografia autorizada. Dulles realizou mais de 300 entrevistas com pessoas que já morreram, como Lacerda e Juscelino, e me presenteou com nove volumes encadernados, que tinham ficado fora dos livros”, revela.
“A biografia de Castello nos mostra que talvez a expressão vontade política
seja uma falácia. Nem sempre um governante pode impor sua vontade; ele é obrigado a buscar um equilíbrio que implica constantemente contrariar suas convicções”, diz Lira Neto.