31/03/2004 - 10:00
Os seis tiros que atingiram Marcelo Yuka no dia 9 de novembro de 2001 não conseguiram detê-lo. O músico e compositor, que se tornou conhecido depois que o grupo O Rappa escalou as paradas com sua crítica social, foi baleado em um assalto na Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro. Teve o pulmão perfurado, e uma bala parou a cinco milímetros da medula. Ficou paralisado da cintura para baixo, passou por quatro operações e chegou a ouvir de médicos qualificados que nunca mais andaria. Contrariando as previsões, Yuka ficou de pé no início do ano e, há um mês, com o auxílio de um aparelho feito por artistas circenses especialmente para ele, deu alguns passos. “Tipo Robocop, né?”, brinca. Retomou a natação no mar de Paraty e revela, exultante, que voltou a fazer sexo. Aos 38 anos, o músico quer mais: inscreveu-se para participar da experiência de reabilitação com células-tronco (que teriam capacidade de substituir as células lesadas) no Instituto de Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Apesar de tantos progressos, Yuka não quer ser visto como modelo para ninguém. “Encarei isso muito mal, minha depressão foi aguda”, recorda. “Não quero ser herói nem coitado.” Depois de ir ao fundo do poço, voltou cheio de idéias. Acaba de receber uma concessão de rádio FM educativa, pretende conseguir uma audiência com o presidente Lula para propor uma parceria nos seus projetos culturais e sociais e está em estúdio gravando músicas com sua nova banda, o Furto – iniciais de Frente Urbana de Trabalhos Organizados. Critica uma parte da mídia que, ao se referir à população pobre, só trata de violência e notícias negativas. Essa mesma característica ele aponta em um dos gêneros musicais mais ouvidos pelos jovens, o hip hop. “Eles não estão apenas cantando isso (a violência), mas também motivando.” O único assunto que Yuka se escusou de tratar nesta entrevista a ISTOÉ foi o motivo de sua saída do Rappa.
Já. Não me levanto ainda, mas fico em pé com auxílio, me
equilibro. Recentemente consegui dar uns quatro passinhos. Tipo robocop, né?
Os especialistas me dão chances de voltar a andar, mas prefiro não apostar.
O primeiro que falou isso foi o neurologista Paulo Niemeyer. Quando todo mundo
me condenava, ele me deu essa força. Uma das coisas que foram cruciais para meus passinhos foi o trabalho do fisioterapeuta, o Marcelo Nabuco, que me pôs na prancha ortostática (uma prancha à qual o paciente fica preso por tiras) e me incentivou a ficar de pé.
Senti medo de cair. Há muito tempo eu ficava de pé, mas com as tiras que me prendiam à prancha. Depois comecei a soltar as tiras e passei a me equilibrar sobre o corpo. Mas ainda havia o apoio nas costas. Tinha de reaprender a me equilibrar para não ir para a frente. Foi aí que apareceram o Geraldinho Miranda e o Hubert Barthod, da Fundição Progresso, onde o grupo Intrépida Trupe dá aulas de circo, e criaram um aparelho com correias de pára-quedas, mosquetões de alpinismo e cordas de circo, presas ao teto. Eles me içam pelo ombro até que, aos poucos, eu fique com o peso do corpo sobre as pernas. Assim, comecei a mexer os quadris e há mais ou menos um mês dei os primeiros passos. Fizeram isso a partir do trabalho de circo, um tipo de atividade que procura contestar as leis da física. Até agora, o aparelho é fixo. Mas vai ser móvel, encaixado em trilhos que me possibilitarão andar sem apoio. Está sendo desenvolvido. As correias ainda doem na virilha, mas isso não acontece só comigo. Os pára-quedistas também sentem essa dor.
Eu nado. Fui a Paraty e nadei 400 metros. Claro que o peso do corpo é sustentado pelos braços. Consigo até nadar debaixo d’água, o que é um esforço muito grande. Tenho a primeira prancha de surfe do País adaptada para deficiente físico. Tem a forma de um pranchão, com maior flutuação e presilhas ao lado. É para pegar onda deitado. Ainda não peguei onda com ela, porque é perigoso. Mas pratiquei o esporte na adolescência e esse é um sonho. Hoje eu faço sexo, amigo (risos). E agora eu estou falando com vocês e sinto uma dor na perna. A recuperação dessa sensibilidade é um bom sinal.
Eu nado. Fui a Paraty e nadei 400 metros. Claro que o peso do corpo é sustentado pelos braços. Consigo até nadar debaixo d’água, o que é um esforço muito grande. Tenho a primeira prancha de surfe do País adaptada para deficiente físico. Tem a forma de um pranchão, com maior flutuação e presilhas ao lado. É para pegar onda deitado. Ainda não peguei onda com ela, porque é perigoso. Mas pratiquei o esporte na adolescência e esse é um sonho. Hoje eu faço sexo, amigo (risos). E agora eu estou falando com vocês e sinto uma dor na perna. A recuperação dessa sensibilidade é um bom sinal.
Estou no protocolo (lista) de estudos com as células-tronco no Hospital das Clínicas de São Paulo
Existem dois tipos de grupos: os lesados medulares por pressão ou esmagamento e os lesados por projétil de arma de fogo, que é meu caso. Esse não foi liberado, mas pode acontecer ainda este ano.
Essa coisa de tocar bateria é para dentro de casa, ainda não tenho precisão para isso. Uso um aparelho chamado biofeedback. Com a ajuda dele, consigo movimentar os músculos da perna, mas ainda não controlo o som precisamente. Comecei a usar o aparelho logo depois de passar por momentos muito ruins no hospital Sarah Kubitschek. Cheguei a descartar a possibilidade de voltar a tocar.
O Sarah foi horrível para mim. Eles têm várias habilidades. Mas me condenaram totalmente e da maneira mais bárbara. Tinha acabado de levar um tiro no pulmão e o senhor Campos da Paz (Aloysio Campos da Paz, diretor do hospital) entrou com um cigarro no meu quarto. Depois de ver os exames, ele disse: “Marcelo, tenho uma notícia excelente: você vai voltar a tocar.” Minha família ficou comemorando e eu, descolado já naquela curva que só desce, fiquei desconfiado e falei: “O senhor sabe que bateria se toca com os pés?” Ele disse que não tinha problema, que uma equipe de engenheiros ia fazer uma ótima bateria para ser tocada só com as mãos. Meu pai perguntou: “Então, ele não vai andar nunca mais?” O senhor Campos da Paz respondeu: “Veja bem – pegou um quadro e desenhou, fumando um cigarro, e eu com meio pulmão –, o ser humano pode andar de um ponto a outro de carro, de moto, de bicicleta, a pé e de cadeira de rodas… que é o caso do seu filho.” Pior foi o que ele falou depois para o meu pai: “Vai acontecer uma coisa boa com seu filho. É o efeito Lars Grael.” Perguntei o que era isso e ele respondeu: “O Lars Grael tinha conquistado não sei quantas medalhas pelo Brasil e a maioria das pessoas não sabia. Quando teve a perna amputada, todo mundo passou a saber quem é o Lars Grael. Eu, por exemplo, nem sabia quem era você. Agora que você está com esse problema, muita gente passou a te conhecer.” Ainda tem mais. Eu tinha um problema no braço, que ficou atrofiado, e sentia uma dor muito forte. Aí minha médica falou para eu ficar no hospital porque tinham prometido dar um jeito no meu braço. O braço era fininho e não tinha movimento. Aí eu fiquei para operar. Pensei: “Pelo menos o braço os caras vão fazer.” Tomei todos os tipos de remédio e nada. Uma dor enorme. Aí os caras concluíram que teriam de cortar meu braço. Minha médica entrou em contato com o dr. Tomaz Nassif, cirurgião plástico, e ele falou: “Eu trato do braço dele.” O braço voltou, olha aí (bate palma). Os caras queriam cortar.
A minha depressão foi aguda. A sequela maior é a da cabeça. Se não consertar, não se pode melhorar o físico. Há pessoas que me param na rua para falar que sou um exemplo, mas não sou exemplo nenhum. Encarei isso muito mal. Até entender melhor, demorou muito tempo. E é óbvio que não gosto de cadeira de rodas. Durante muito tempo foi um mergulho sem ter onde segurar. Muita gente se apega a Deus. Comigo foi o contrário, reneguei por completo. Chega um momento em que nem mesmo adianta ter ao seu lado as pessoas que te amam e a família. Você quer acreditar em algo superior e não tem. Pensa: “Porra nenhuma, o cara
me f…” Aí a gente apodrece, cara.
Não posso deixar que as coisas em que eu acredito, minha música,
minha poesia, se reduzam ao estereótipo do cara da cadeira de rodas. Há o sensacionalismo, a necessidade de fazer o coitado ou o herói. Não quero vestir carapuça nenhuma. Eu não quero ser mito, aquilo que talvez muitos artistas
queiram. Se saio do camarim e converso com a pessoa normalmente, ela começa
a ver que não sou muito diferente dela, acabou o mito. Agora, se o cara faz um olhar meio “eu sou de difícil acesso”, anda cheio de segurança, mesmo sem ser porra nenhuma, vira um mito.
Eu já fiz shows junto com negões de hip hop e ninguém falou comigo. Tomei tiro, virei mano. Talvez porque eu tenha passado um sufoco que é normal para os mais pobres.
Vou a lugares onde as pessoas se emocionam quando eu falo. É uma responsabilidade. Gente que disse ter largado as drogas por ter lido algo que escrevi. Pessoas que começaram a fazer projetos sociais depois de ver meus trabalhos. Quando se fala de violência, a mídia mostra muito o lado violento da comunidade, mas tem muita gente que faz trabalhos bonitos.
A maior parte do hip hop faz isso. Muitas pessoas influenciadas pelo gênero gangsta rap falam do cara que não teve chance e entrou para o crime. Uma pesquisa básica: a favela mais bem armada do Rio e até do Brasil seria a Rocinha, com 300 homens armados com fuzis. É muita coisa. Mas qual é a população da Rocinha? Mais de 160 mil pessoas. Então, a relação das pessoas que estão no crime com as que são simples moradores é de 0,001%, se for. Outra coisa: a Rocinha, como as outras comunidades, é dividida em diversas classes sociais. Aquele que é totalmente analfabeto vive na rua e não tem referência de família, é a classe mais baixa e vai buscar um emprego de fogueteiro (no tráfico) para ganhar R$ 500 por semana. É a parte da sociedade que viu o lado violento da vida, mas a gente não pode generalizar. Essa vertente do hip hop não só está cantando isso, mas também motivando, principalmente em São Paulo.
No início era uma coisa de valorizar a cultura do gueto, da comunidade. Queria mexer com a auto-estima do cara pobre. Agora, com o gangsta rap, é a gangue de lá contra a daqui, começou tudo a mudar. Os vídeos mostram o negro ostentando o poder das formas mais convencionais e hipócritas. Cordão de ouro, carros, mulheres. Não passa aquilo que realmente é o poder de transformação: o livro. Além disso, quantos não têm como gravar o próprio disco e gravam o “proibidão” (CD com raps e funks com apologia ao tráfico e pregando a violência contra grupos rivais), que é bancado pelo crime? Eu sou a favor da livre expressão, acho que o cara tem de cantar. Agora, que incentiva o crime, incentiva. Tem moleque que não sai da comunidade, mesmo sem ter nada a ver com o crime. Ouve aquele cara cantando o dia todo “eu explodi, eu matei”. O garoto vai assimilar isso. Ganhei uma concessão de rádio educativa em FM e quero começar a criar espaços neutros. A cultura é a fórmula contra o crime.
Tenho um projeto voltado para uma comunidade aqui do Rio. Quero reunir vários grafiteiros do Brasil e do Exterior para fazer o maior grafite do mundo, contando a história do samba. Já tenho lugar para isso. Outro projeto é um caminhão que já está em desenho e maquete, uma espécie de “Bye bye Brasil” moderno e com final feliz, levando uma série de artistas a lugares em que a arte não chega, como cidades do interior. O caminhão vira vários palcos, com atividade circense, dando valor à arte local. Gostaria de propor esses projetos ao Lula.
Eu ainda acredito. Mesmo acontecendo fatos que eu não esperava, acho que é muito cedo para julgar o primeiro presidente que etnicamente se parece comigo, que tem um sobrenome parecido com o da maioria de nós.
Estou morando no estúdio. Gravamos muitas coisas, mas não sei definir
o nosso som. A gente fechou com uma gravadora, mas é melhor deixar que
eles divulguem. Dizem que minhas canções são muito pesadas, mas são de forte amor pela minha comunidade, carregando uma necessidade de mudança, uma visão política. O acidente não me fez mais rebelde do que eu era antes. Vai ter uma música no novo disco sobre os pobres que não caíram no caminho fácil do crime. São a grande maioria.
Sobre isso eu não falo. Não vou lavar roupa suja na imprensa, deixa eles falarem.