Sempre imprevisível, Cacilda Becker (1921-1969) certo dia comunicou ao amigo Plínio Marcos (1935-1999) a decisão de cantar num espetáculo. Sem papas na língua, o dramaturgo santista teria dito à então diva maior do teatro brasileiro: “Ora, Cacilda, você vai ter coragem? Você não canta nada, é completamente desafinada.” De forma quase pleonástica, Cacilda replicou: “Se eu acreditar que estou cantando, todo mundo vai acreditar que eu canto.” Dito e feito. Na estréia da peça, Cacilda cantou errado, mas com tal convicção que a platéia inteira saiu falando maravilhas. O episódio faz parte das lembranças da atriz paulista Walderez de Barros, 63 anos e 40 de carreira comemorados com o espetáculo Fausto zero, de J.W. Goethe, em cartaz em São Paulo. Mulher de Plínio Marcos por duas décadas, Walderez recorreu à história de Cacilda para ilustrar uma das lições aprendidas nas décadas de atividade – em teatro, tudo o que é feito com verdade nunca é colocado em dúvida pelo espectador.

É exatamente o que acontece quando a atriz surge em cena na pele de um homem, enfiada num terno roxo esfarrapado, tendo na cabeça uma peruca de palhaço. Walderez é o doutor Fausto em versão colorida-popular-erudita do diretor mineiro Gabriel Villela, que alinhava ao universo pré-romântico de Goethe referências a Guimarães Rosa, ao teatro oriental e ao mito grego das três parcas, tecelãs do destino. No papel do médico e professor que vende a alma ao diabo em troca de prazeres e conhecimentos, Walderez emplaca mais um grande papel na sua carreira de brilhos. “A alma do personagem tem algumas características masculinas e outras universais. Eu me apóio nas universais”, afirma a atriz, conhecida pela versatilidade dos tipos que encarna. De heroínas gregas como Medéia e Clitemnestra a figuras brasileiríssimas, entre elas a prostituta Dilma, de O abajur lilás, passando pelas aristocratas russas de Anton Tchecov. Para o grande público, ela é mais lembrada como a Judite da novela global O rei do gado.

Fausto zeroque traz no elenco Vera Zimmermann no papel de Margarida e o ator italiano Alvise Camozzi no de um Mefistófeles de trejeitos saídos da commedia dell’arte – é a segunda parceria da atriz com Gabriel Villela. A primeira aconteceu na peça de Alcides Nogueira, A ponte e a água de piscina (2002). “Estou com a melhor atriz brasileira nas mãos. A Walderez é uma Sherazade, não deixa o contador de histórias morrer. Ela é a senhora das entonações”, empolga-se o diretor. Walderez diz que é um renascimento o encontro com Villela. A atriz – nascida na cidade paulista de Ribeirão Preto e filha de um ferroviário com uma costureira – não gosta de encarar sua trajetória como uma carreira, no sentido clássico do termo. Prefere eleger os momentos nos quais sua paixão pelo palco foi reacendida.

CPC – Entre as pessoas determinantes com quem trabalhou desponta o diretor Fauzi Arap, que a dirigiu em O abajur lilás (1980). Foi com ele que – ainda estudante de filosofia na heróica sede da Universidade de São Paulo da rua Maria Antônia – conheceu o palco nas criações coletivas e engajadas do Centro Popular de Cultura (CPC). Em 1961, ela encontrou Plínio Marcos, que, cinco anos depois, arrebataria público e crítica com a peça Dois perdidos numa noite suja. “Geralmente, ele fazia questão que eu interpretasse seus textos”, conta. Uma das parcerias que também geraram grandes espetáculos aconteceu com Jorge Takla, que, entre outros textos, a dirigiu em O jardim das cerejeiras (1981), de Tchecov, e em Medéia (1997), de Eurípedes. “O que me fascina no teatro são as grandes interpretações”, diz Walderez. Não à toa, seus olhos brilham quando fala da emoção de ver pela primeira vez Cacilda Becker em cena, na peça Em moeda corrente do país, de Abílio Pereira de Almeida. “Saí gritando do teatro. Fiquei enlouquecida, nunca imaginava que uma pessoa pudesse ser tão magnética e maravilhosa no palco.”

Na companhia de Cacilda, estreou profissionalmente no espetáculo

Onde canta o sabiá

, de Gastão Tojeiro. “Não me programei para ser atriz e não me programo até hoje”, afirma, numa postura que lhe permite estar sempre recomeçando. Em Fausto zero, por exemplo, pela primeira vez usa uma máscara em cena. Encerrada como uma marionete num teatrinho de papelão, declama de forma sublime o monólogo inicial da peça, quando Fausto, depois de estudar filosofia, medicina, jurisprudência e teologia, se confessa um pobre ignorante, se entregando à magia. Mesmo com a densidade do texto, no ato Walderez de Barros ganha a platéia.