31/03/2004 - 10:00
O xeque Ahmed Yassin, 67 anos, mal havia saído da mesquita central da cidade de Gaza, na manhã de segunda-feira 22, quando mísseis disparados por um helicóptero israelense caíram sobre ele. Um primeiro petardo atingiu em cheio o alvo sobre uma cadeira de rodas; segundos depois, outro projétil explodiu. Terminava assim a crônica de uma morte anunciada: Israel já havia tentado matar aquele homem várias vezes, a última delas em setembro do ano passado. O paraplégico Ahmed Yassin era o líder espiritual e fundador, em 1987, da organização guerrilheira palestina Hamas (Movimento de Resistência Islâmica), responsável maior pela onda de explosões e assassinatos que há quatro anos atormentam os israelenses. “Este foi o último prego no caixão da finada negociação de paz entre palestinos e israelenses”, diz o professor Rashid Khalidi, diretor do Instituto de Estudos do Oriente Médio da Universidade de Columbia, de Nova York. Mas a questão palestina não é composta por apenas um caixão, e infelizmente, a paz não será o único defunto a ser enterrado em futuro breve ou longínquo.
Antes mesmo de 200 mil pessoas saírem às ruas de Gaza para chorar a morte de Yassin, o Hamas já havia apontado outro líder em seu lugar: o dr. Abdel Aziz Rantisi, 57 anos, conhecido porta-voz do grupo, foi para o posto que era do xeque. Seu primeiro ato como comandante do Hamas foi conclamar a população ao contra-ataque e avisar que novas ondas avassaladoras de atentados contra israelenses darão o tom da vingança. “Como se o Hamas já não estivesse tentando todas as formas de ataque. Rantisi não nos assusta, porque seus terroristas estão fazendo tudo o que podem. Não há mais como aumentar a violência contra Israel”, diz o chefe do serviço de inteligência militar israelense, Ahron Zeevi-Farkash. E a liderança de Rantisi também luta contra o relógio. Há anos Israel já pintou os círculos de alvo na testa do sucessor. Em junho passado, seu carro foi atingido por um míssel e ele escapou por pouco.
“A única escalada possível para as ações do Hamas seria buscar alvos americanos. Mas a maioria dos analistas que acompanham o Oriente Médio não acredita nisso”, diz Abel Hackman, cientista político da Interligx, empresa de consultoria e análise de política, segurança e inteligência. A ameaça de ataques contra os EUA não demorou a vir de alguns círculos do Hamas, porém foram desautorizados por Rantisi. Por certo existem aqueles que, dentro e fora do Hamas, vêem aprovação tácita de Washington às ações israelenses. Na primeira reação da Casa Branca ao assassinato de Yassin, a conselheira de Segurança Nacional, Condoleezza Rice, disse que Israel tinha o “direito a se defender” e, com isso, sinalizou o carimbo de aprovação do governo Bush.
“Essa falta de empenho dos EUA para uma resolução pacífica da questão
palestino-israelense acaba por colocar em perigo toda a política do governo
Bush para a região. Agora, por exemplo, com o assassinato do xeque Yassin.
Ele podia não ser muito querido pelos líderes árabes, mas era extremamente respeitado e considerado um combatente independentista. A Casa Branca
parece que não se importou com a ação israelense. Este governo acredita que
ainda existe o chamado plano Road Map (mapa da estrada). Só eles mesmos acreditam num possível acordo de paz, sem envolvimento americano”, diz o professor Khalidi. Enquanto o governo Bush patina no lamaçal de seu Road Map, a Autoridade Nacional Palestina cada vez mais contradiz o próprio nome: já não tem autoridade para nada. “Ao isolarem os líderes eleitos pelos palestinos, não importa se são corruptos e ineficientes, americanos e israelenses criaram um vácuo de poder que foi preenchido pelo Hamas. E agora, com quem vão negociar?”, pergunta o professor da Columbia.
As negociações não parecem estar nos planos do governo do primeiro-ministro de Israel, Ariel Sharon. Alguns analistas afirmam que o assassinato de Yassin faz parte de uma maquiavélica estratégia de Sharon para fortalecer o Hamas, neutralizando os setores palestinos moderados, inviabilizando, assim, qualquer acordo de paz. No começo do ano, o premiê anunciou esboços de um plano unilateral para a retirada da Cisjordânia. A desocupação se daria após a construção do muro de 700 quilômetros que separará os palestinos dos israelenses. Há cerca de um mês, o xeque Yassin teria dito que a retirada das tropas de Sharon era uma vitória palestina, mas que iria esperar para ver a evolução dos acontecimentos e a liberação final de todo o território palestino ocupado depois da guerra de 1967. “Sharon estaria dando um aviso de que a retirada de tropas, se acontecer, não será uma vitória palestina. O que este governo não quer é que se repita aquilo que houve na retirada israelense do sul do Líbano, quando o grupo Hizbolá se declarou vitorioso. Assassinando os líderes do Hamas ou de outros grupos, Israel está dizendo que pode fazer o que bem entender, mesmo quando sair da Cisjordânia”, diz Abel Hackman.
O patrocínio de assassinatos pelo Estado é uma prática antiga de Israel. Começando por ex-nazistas que haviam escapulido da Justiça e foram encontrados e mortos pelos serviços de inteligência israelenses. A política de eliminação continuou com militantes palestinos, e a promessa agora é de extermínio massivo das lideranças do Hamas e de outros grupos, o que merece a frase de “solução final” para o problema. Os judeus já sofreram com esse conceito na Rússia, Polônia, Alemanha e outros lugares.
Pelo que se viu até agora, a morte de Yassin foi mesmo um duro golpe para o Hamas. Mesmo o primeiro esboço de contra-ataque foi uma mostra de que a liderança do movimento está perdendo o traquejo nas ações de massacre. Na quarta-feira 24, diante de uma barreira militar israelense na Cisjordânia, um garoto foi detido e forçado, sob alças de mira, a fazer um strip-tease. Por baixo do suéter vermelho, Hussan Abdo – de 14 anos, segundo fontes de Israel, ou 16 anos, de acordo com os pais do menino – vestia um colete com explosivos, que foram desativados pelos soldados. Era uma “criança-bomba”, que aos prantos dizia que não queria morrer. A cena, gravada pelas câmeras de televisão, caracteriza dupla evidência: a de que o Hamas mergulhou no patético e a de que a situação palestino-israelense desconhece paroxismos de desumanidade.