O chamado inferno astral dura até o dia do aniversário. É um período difícil, em que as coisas dão errado. Ao completar 58 anos no último dia 16, o pisciano José Dirceu, ministro-chefe da Casa Civil, pivô da crise Waldomiro Diniz, fez um emocionado discurso, como se considerasse sua má fase encerrada. Mas os astros reservaram a ele um inferno longo. Na quarta-feira 24, oito dias depois do aniversário, quando a crise no governo atingia a temperatura máxima com a iminente insurreição da base aliada no Congresso, Dirceu levava a mais ríspida repreensão do presidente Lula desde que assumiu as funções de primeiro-ministro. Em tom duríssimo, o técnico da seleção deu uma bronca em seu principal jogador e tirou de Dirceu a braçadeira de capitão: Lula decretou o banimento do ministro da Casa Civil do mundo político. “Zé, eu não quero você metido em política, não quero ver você polemizando e dando entrevistas. Quero você cuidando da administração.” O presidente referia-se às atribuições passadas a Dirceu na última reforma ministerial. “O Zé foi enquadrado e vai agir só internamente, dentro do governo”, contou um interlocutor.

Ao mesmo tempo, Lula comunicou aos ministros e líderes políticos que, a partir  de agora, quem cuida de contatos políticos, nomeações e emendas parlamentares  é exclusivamente o ministro Aldo Rebelo (PCdoB-SP). A gota d’água que levou  o presidente à exasperação foi a série de declarações desastradas de Dirceu ao longo da última semana. Lula avaliava que o caso Waldomiro já estava superado e Dirceu o ressuscitou ao atacar os tucanos quando a poeira assentava. O ministro, a quem caberia esfriar os ânimos e garantir estabilidade política, atiçou a crise, chacoalhou a economia, trepidou a base de apoio do Planalto no Congresso e  levou ao ápice um problema que o governo suava para debelar. “Ele é a crise, gera crises permanentemente. Tem que submergir uns 60 dias e não abrir  a boca”, aplaudiu um importante líder do governo. Publicamente, o líder do PTB não mediu palavras: “Eu gosto dele, o considero uma vítima, mas a situação
está beirando a insustentabilidade. Todo dia tem um problema”, desabafou José Múcio Monteiro (PE).

No meio de uma das várias conversas que teve para analisar a confusão que causou, conta um ministro, Dirceu chegou a jogar a toalha diante da pressão: “Se houver a avaliação de que minha saída é a solução para o governo, não tenho nenhum problema em deixar o cargo. Talvez seja melhor eu sair e cuidar da minha vida”, desabafou. Na quarta-feira 24, avisou a amigos que pediria demissão ao presidente Lula – a segunda vez desde que estourou o caso Waldomiro. Além de fragilizado com a situação, o ex-superministro estava descontente com o que considerava o esvaziamento de suas funções durante os últimos meses por ordem do próprio presidente. Dirceu foi desaconselhado a sair neste momento, mas o seu exílio político abre um vácuo no governo. Não é fácil encontrar um quadro que o substitua na coordenação política, já que ele controla a maioria do PT, tem ascendência sobre o presidente e boas relações com os outros partidos da heterogênea base do governo. Além de esconder Dirceu, o Planalto pensa em mexidas ministeriais para buscar eficiência e dissipar a imagem de paralisia. Amadurece a recriação do Ministério da Administração para lidar com uma de suas principais bases eleitorais, o funcionalismo público, que vem comandando as greves mais desgastantes para o PT. Se a solução for interna, o nome poderá ser Miriam Belchior, braço direito de Dirceu, hoje na subchefia de monitoramento e avaliação da Casa Civil. O mais provável, entretanto, é que o governo use o Ministério para fidelizar sua base, entregando-o ao PMDB ou ao PTB. Outra idéia colocada no forno nesse pacto interno traçado por Lula é a reestruturação do Ministério do Desenvolvimento, hoje escondido na pasta do ministro Luiz Fernando Furlan (Desenvolvimento, Indústria e Comércio). O presidente quer resolver ainda a insatisfação da base aliada através da criação de um conselho político formado pelos presidentes dos partidos que o apóiam.

Lula também baixou uma ordem unida. Não quer mais ver a brigalhada dos bastidores no noticiário, como o desabafo do ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, a um grupo de parlamentares, por considerar que não estava sendo atendido pelo colega Guido Mantega (Planejamento). Lula incumbiu o ministro-chefe da Secretaria de Comunicação, Luiz Gushiken, de ser o porta-voz do pito à equipe. “A liberdade de opinião de ministros e assessores que o presidente escolheu se restringe às reuniões internas”, avisou na segunda-feira 22. A bronca dada por Gushiken, exercendo uma função que até então era do capitão do time, irritou  Dirceu, que se sentiu atropelado. Com os afagos orçamentários e a ordem de silêncio, o governo espera superar a crise que se agravou com as declarações  do ex-número 1 da Esplanada.

Pingos nos is – Na mesma segunda-feira 22, Dirceu atacou os jornalistas que o inquiriam sobre suas relações com Rogério Buratti – denunciado como parceiro de Waldomiro na negociata da Gtech: “Eu já disse que não tive relação com ele na década de 90, mas a má-fé e o mau caratismo levam a este tipo de pergunta.” No dia seguinte, a pretexto de “colocar os pingos nos is”, o ministro ligou para o colunista do jornal O Globo, Merval Pereira, e entornou o caldo de vez. Começou chamando de “fraco” o mais ameno dos adversários no Congresso, o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), que havia inclusive defendido o ministro da Fazenda, Antônio Palocci. O líder do PSDB, Arthur Virgílio Neto, recebeu o carimbo de “irresponsável”. Em seguida veio o pior: Dirceu agrediu os governadores dos maiores Estados do País: Aécio Neves (MG) e Geraldo Alckmin (SP), insinuando que a oposição discreta dos dois tucanos era interesseira: “Não podiam ter outro comportamento. Governador de Estado hoje, sem governo federal, não aguenta um mês.” Tudo isso dois dias depois de Lula ter flertado com Aécio em Minas em um evento no qual ambos pareciam mais aliados do que adversários. Por fim, Dirceu atacou, na explosiva entrevista, um antigo aliado, o Ministério Público: “Não vou deixar isso barato não. O MP vem fazendo violências legais a todo momento e continua”, disse, referindo-se ao trabalho dos procuradores no caso Waldomiro.

Houve quem achasse que Dirceu estava descontrolado e por isso teria “falado
com o fígado”. Mas nos bastidores petistas corria a explicação de que o capitão
do time, apesar de ter de fato um temperamento irascível, fez seus cálculos antes
de chutar os adversários: sua intenção era acabar com o clima de “romance”
entre tucanos e parte do governo, capitaneado por Palocci. “O ministro da Fazenda adora o PSDB. Tanto que a Receita Federal está nas mãos dos tucanos. Não
houve trocas lá”, comentou um parlamentar petista. O clima romântico contaminou
o próprio Lula, que já lançou nos bastidores o sonho de um dia vir a casar o PT
com o PSDB. Essas sinalizações irritaram as bases do PT. Afinal, este ano petistas
e tucanos vão se digladiar nas batalhas pelas prefeituras. Daí a declaração do presidente do PT, José Genoino, que apoiou as duras palavras de Dirceu, afirmando que “alguém tem que bater”.

Briga petista – O namoro que Dirceu queria ver selado era com o PMDB, mas o casamento perfeito só seria celebrado com a união em São Paulo. Porém, a
prefeita Marta Suplicy (SP) – que desde a eclosão da bomba Waldomiro só se manifestou publicamente para defender Palocci e sua política econômica – estragou os planos de Dirceu ao decidir escolher como candidato a vice na sua chapa à reeleição o seu secretário de Governo, Rui Falcão. Marta bateu o pé e não quis aceitar que o PMDB de Orestes Quércia, com quem Dirceu vinha conversando, indicasse seu vice. Tudo isso porque em 2006 ela quer estar livre para ser candidata a governadora, caso se reeleja. Este projeto esbarra com os de outras estrelas petistas, como o próprio Dirceu. Quércia ficou irritadíssimo e anunciou que não irá apoiar Marta no primeiro turno. Na brigalhada interna petista, há de um lado Marta e Palocci, e de outro Dirceu, com apoio de boa parte das bases do partido que dirigiu com mão de ferro por sete anos.

A reação aos tiros desferidos por Dirceu contra os tucanos foi múltipla e instantânea. Tasso sugeriu um repouso a Dirceu. “O ministro deveria tirar uns cinco ou dez dias de férias”, aconselhou. Menos diplomático, Artur Virgílio Neto devolveu: “Vamos rasgar a fantasia. Não existe um caso Waldomiro. Existe um caso José Dirceu e é disso que ele tem medo.” Já o MP acusou Dirceu de ter interesses contrariados. Foi uma saraivada de críticas sem ninguém para defendê-lo. Dirceu teve que pedir desculpas, mas direcionou-as apenas aos governadores. No entanto, o estrago já estava feito. Mesmo avariado, Dirceu ainda tentou esvaziar a acusação de que o governo estaria parado: “Pode haver um problema administrativo, de recursos de um ministério. Mas o governo não está paralisado.”

Alarmado com a revolta na Câmara, que até ali apenas contemplava o terremoto, o presidente da Casa, João Paulo Cunha (PT-SP), se reuniu duas vezes com Lula
e o alertou para a gravidade da rebelião aliada. Tendo como pretexto a votação
da medida provisória que proibiu os bingos do Brasil, três partidos aliados ameaçavam votar contra a orientação do Palácio. Para evitar uma surpresa, João Paulo pediu o aval de Lula para assumir compromissos com os parlamentares. O presidente não só topou como despachou cinco ministros pesos pesados para afiançar o que estava sendo discutido. Em duas reuniões simultâneas, na madrugada da quarta-feira 24, uma com líderes aliados, esta com a presença de Dirceu e Palocci, e outra com presidentes de partidos que apóiam Lula, o Planalto renovou a promessa de começar a liberar as emendas ao Orçamento – um total de R$ 4,7 milhões por parlamentar. De outro, se comprometeu a agilizar as nomeações. O PP quer quatro diretorias em estatais, o PTB tem apetite maior: um segundo ministério prometido lá atrás.

O primeiro sinal foi dado pelo ministro Guido Mantega, que liberou R$ 800 milhões do Orçamento. Na reunião com os líderes, o bombeiro João Paulo foi cristalino: “Eu provoquei esta reunião para lavar roupa suja”, e deu a palavra aos líderes insatisfeitos. “Tem ministro que acha que nós somos lobistas e nem nos recebe”, disparou Sandro Mabel (PL-GO). “Vocês achavam que eram melhores do que nós. Estão vendo que não é verdade”, criticou o líder do PTB, José Múcio Monteiro. A estratégia para usar a fragilidade de Dirceu como moeda de troca por cargos e verbas nasceu em um almoço na casa do presidente do PL, Valdemar Costa Neto (SP), onde confabularam os líderes e presidentes do PTB, do PP, do PSB e do PL. A nova direção do PMDB, cuja maioria é de políticos ligados ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, também resolveu pressionar por espaço. Divulgou uma nota cobrando oito mudanças na política econômica, entre elas a correção da tabela do Imposto de Renda, redução de juros e diminuição da carga tributária.

O presidente do partido, Michel Temer (SP), que sonhava ser vice na chapa de Marta, comandou o motim peemedebista na estratégica ausência dos dois maiores parceiros de Lula, os senadores José Sarney (PMDB-AP) e Renan Calheiros (PMDB-AL). As digitais do oposicionista Geddel Vieira Lima (PMDB-BA) estão por todos os lados. “O apoio que o partido dá ao governo é subordinado a uma política que promova o crescimento, distribua renda e gere emprego”, condiciona a nota. Outra facada aliada veio, inesperadamente, do líder do governo na Câmara, o ex-ministro Miro Teixeira (sem partido). No clímax da crise, Miro simplesmente abandonou a liderança sem falar com o presidente. O ex-ministro andava se estranhando com os petistas e sua saída já era esperada, mas o momento escolhido contribuiu para aumentar a instabilidade. Aproveitando a crise, a oposição começou a se rearticular. Na quinta-feira 25, reuniram-se em Brasília os presidentes do PFL, Jorge Bornhausen, do PSDB, José Serra e o líder do PDT, Jefferson Peres (AM) e lançaram um documento cobrando ética e emprego. Toda crise é pedagógica e essa, apesar do estrago, levou a uma reavaliação feita pelo próprio presidente Lula, durante a entrega de um prêmio
no Rio de Janeiro: “Nós nem somos tão ruins quanto nossos adversários apregoaram e apregoam, nem tão bons quanto pensamos que somos. Nós não somos nada mais que seres humanos com vontade de fazer e acertar.” Uma piada que corre nos corredores petistas diz que o partido tem em seu revólver duas balas: uma para atirar no pé e outra para acertar o alvo. Se o mesmo vale para o governo, o pé já foi atingido. Resta saber se a pontaria agora está boa para acertar o alvo: na direção do crescimento econômico e da geração de empregos. É isso que o torcedor quer ver em campo.