17/03/2004 - 10:00
No passado, quando se falava de câncer, costumava-se pensar numa doença terrível, contra a qual nada se podia fazer. Com o tempo, as perspectivas mudaram. O câncer ainda atinge muita gente e faz sofrer, mas agora pode ser derrotado, dependendo do estágio em que for descoberto. Isso a medicina vem demonstrando ano após ano. Além da criação de remédios mais potentes e com
menos efeitos colaterais, a ciência está desvendando mecanismos bioquímicos que permitem conhecer mais a fundo a maneira como o inimigo age. Ou melhor, inimigos. O discurso mais corrente dos especialistas aponta o câncer não como uma única enfermidade, mas diversas, já que cada tumor tem suas peculiaridades. Por isso, as frentes de combate às células malignas estão cada vez mais variadas e funcionando de modo mais localizado.
Hoje, a luta contra o câncer – celebrada no dia 8 de abril – envolve táticas para atingir o inimigo em si (bombardeando o tumor) e as estratégias de expansão do exército agressor. Uma dessas formas é impedir que os tumores sejam alimentados pela via sanguínea. O sangue carrega oxigênio e nutrientes necessários para seu crescimento. Sem ele, corta-se o suprimento, impedindo sua atividade. Essa teoria, chamada de antiangiogênese (inibição da criação de vasos sanguíneos), é antiga. Em 1998, voltou a ser falada com a divulgação de um estudo do americano Judah Folkman. O pesquisador identificou duas substâncias – angiostatina e endostatina – que, em animais, impediram a vascularização do tumor, matando-o de fome. Mas até hoje não se conseguiu criar uma droga baseada nesses compostos que tivesse sucesso em seres humanos.
Mas agora a ciência deu uma utilidade prática à teoria. O Food and
Drug Administration (FDA), órgão americano responsável pela liberação
de remédio, aprovou o bevacizumab (nome comercial Avastin), um remédio contra o câncer colo-retal que entrará para a história como
a primeira droga a atuar inibindo a criação de vasos sanguíneos. É um marco que entusiasma. “Estamos avançando. Comprovou-se que a estratégia funciona”, afirma o médico Artur Katz, do Hospital Albert Einstein, de São Paulo.
Por sua importância, o remédio recebeu prioridade de análise pelo FDA. A aprovação inicial foi dada para tratamento de câncer colo-retal metastático (já se espalhou para outras partes do corpo). O estudo que serviu de base para avaliação do órgão americano envolveu 925 pacientes. Os que receberam o Avastin e quimioterápicos tiveram quase cinco meses a mais de sobrevida, em comparação aos que se submeteram apenas à quimioterapia. O mecanismo de ação da droga é inovador. Ela atua sobre os receptores da VEGF, sigla em inglês para fator de crescimento endotelial vascular. O composto é fundamental no processo de criação de vasos. Até o fim do crescimento, ele é bastante atuante porque o organismo precisa fabricar canais de abastecimento para os tecidos que estão sendo gerados. Na idade adulta, porém, o VEGF não é necessário. Torna-se útil apenas para as células malignas, que precisam vorazmente de uma rede de irrigação que sustente a sua proliferação. O Avastin bloqueia a ação do VEGF, evitando, dessa maneira, a formação do suporte sanguíneo importante para o tumor.
Como o fenômeno da criação de vasos é comum aos tumores,
acredita-se que o Avastin tenha enorme utilidade contra outros tipos
da doença (em tese, não teriam indicação apenas para tumores não sólidos – leucemias e linfomas). É por isso que estão em andamento estudos para avaliação do efeito da droga contra câncer de mama, pulmão e de células renais. No Brasil, quatro centros iniciarão uma investigação sobre o remédio em pacientes com câncer colo-retal metastático. “Analisaremos o Avastin associado à quimioterapia oral
e à venosa”, explica Artur Malzyne, consultor em oncologia do Hospital das Clínicas de São Paulo, uma das entidades que participarão do trabalho – os demais são a Fundação Amaral Carvalho, em Jaú (SP), o Hospital Benjamin Guimarães (BH), e o Hospital Sírio-Libanês (SP). O Avastin foi criado pelo Genentech, laboratório do qual a Roche, indústria farmacêutica, é acionista majoritária. Ele está disponível nos EUA, mas no Brasil ainda não há previsão para sua chegada. A Roche espera submeter o produto à aprovação do Ministério da Saúde em dois meses.
O lançamento do Avastin mostra como a medicina investe em armas que combatem o tumor de forma diferente da quimioterapia. Essas drogas, surgidas na década de 40, atingem as células doentes de forma direta, matando-as. São eficazes e têm-se aprimorado de maneira a obter o efeito desejado com o mínimo de danos aos tecidos sadios. Mas os saltos no conhecimento sobre as substâncias envolvidas no processo de geração e proliferação dos tumores e os dados genéticos da doença colaboram para a formulação de outra diversidade de táticas. É um ataque em várias frentes, fechando mais o cerco. Nesse sentido, uma das abordagens mais importantes é o uso dos anticorpos monoclonais. Tratam-se de drogas desenhadas para se ligar a partes específicas da célula. Por isso, elas atuam diretamente no alvo. O bevacizumab é um anticorpo monoclonal com capacidade antiangiogênica. No mercado, existem outros integrantes da classe, entre eles Mabthera e Herceptina. E em fevereiro mais um foi aprovado pelo FDA, o cetuximab (Erbitux).
Associado à quimioterapia, o cetuximab também foi usado em pacientes com câncer colo-retal metastático. A droga fez com que doentes nos quais um dos tipos de quimioterapia não funcionava mais voltassem a reagir ao tratamento. O remédio inibe o receptor do fator de crescimento epidérmico, outro mecanismo que permite a proliferação de tumores. Não se sabe quando o cetuximab chegará ao Brasil, onde será comercializado pelo laboratório alemão Merck. Mas estudos com o anticorpo serão feitos por aqui. Um dos principais especialistas envolvidos nessa pesquisa é o oncologista Antônio Carlos Buzaid, diretor-executivo do Centro de Oncologia do Sírio-Libanês. “O medicamento é promissor não só para o câncer colo-retal, mas também para outros tumores sólidos”, acredita.
Para o oncologista Gilberto Schwartsmann, da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, os anticorpos monoclonais estão entre os
grandes progressos da medicina. Especialmente no caso do câncer
colo-retal. “Antes desses avanços, não tínhamos tratamentos que
fossem de fato muito eficazes”, declara. Mas, é claro, existem outras classes de remédios em desenvolvimento. O Hospital das Clínicas de
Porto Alegre, por exemplo, estuda 26 drogas experimentais. Uma delas
é o RC-3095, uma proteína injetável sintetizada pela Universidade
Tulane, nos EUA. Em fase inicial de pesquisa, ela demonstra capacidade de diminuir temporariamente o tamanho de tumores de próstata e
de um tipo de câncer de tireóide. O RC-3095 inibe um mecanismo do tumor conhecido como bombesina/GRP, que também estimula o crescimento da célula alterada.
Progressos como esses permitiram muitas vitórias. Dez anos atrás, por exemplo, a taxa de cura para o câncer de mama era de 55%. Hoje, é de 75%. O de pulmão teve um salto fantástico, saindo de 5% de cura para 30%. Testes para diagnosticar a enfermidade mais cedo contribuem
para elevar as possibilidades de derrotar o inimigo. O problema é que
o número de pessoas atentas à rotina de exames é ainda pequeno. “Oitenta por cento das lesões chegam aos estágios mais avançados pela falta de detecção precoce”, lamenta o oncologista Jacob Kligerman, do Rio de Janeiro. Não deveria ser assim. Revelados precocemente, muitos tumores atingem índices de cura superiores a 90%. É o caso do tumor de próstata, para o qual há equipamentos de diagnóstico avançados. Hoje, a rotina é fazer o exame de toque retal e a dosagem do PSA no sangue, um marcador que, alterado, alerta para o risco de câncer. Para confirmar, faz-se uma análise de um pedacinho do tecido (biópsia).
Uma novidade é que os médicos começam a recomendar a biópsia
para casos em que o teste de PSA dá resultados menores do que os estabelecidos até agora. “Isso ajuda a diagnosticar tumores iniciais em pacientes mais jovens”, diz o médico Álvaro Sarkis, da Universidade de São Paulo. Se ainda restarem dúvidas, é possível passar por um exame para avaliar áreas suspeitas com mais precisão. É a ressonância endo-retal, feita com a ajuda de uma sonda pequena.
E há mais uma boa notícia nesse campo. Na semana passada, um estudo da Universidade de Pittsburgh (EUA) revelou a existência de um novo marcador para o câncer de próstata. Trata-se de uma proteína, a EPCA, só encontrada nos tumores. Os cientistas sugerem que homens com
nível elevado de PSA façam o teste para detectar a presença desse elemento. Isso porque ele pode ser detectado em tecidos cuja biópsia não revelou a doença. Segundo os americanos, é possível identificar o EPCA e diagnosticar o câncer cinco anos antes do que os exames corriqueiros permitiriam. Para chegar a essa conclusão, os médicos compararam amostras de tecido de próstata saudável com outras retiradas de pacientes com tumores que tiveram inicialmente biópsias negativas. O EPCA só foi localizado no segundo grupo.
Genética – E o futuro promete. As pesquisas sobre o tumor se multiplicam. Nos Estados Unidos, cientistas do laboratório Roche identificaram moléculas capazes de reativar o funcionamento da
proteína p53. É um passo importante. A proteína é uma espécie de
vigia e entra em ação assim que qualquer processo de proliferação inadequada das células (o que caracteriza o câncer) é disparado. Ela induz a morte dessas células, afastando o perigo. Em 50% dos tumores, porém, a p53 não cumpre o seu papel. A descoberta dos pesquisadores pode fazer com que ela volte a desempenhar corretamente suas
funções nos casos em que estiver bloqueada. A empresa pretende aprofundar os estudos nesse sentido.
A investida no entendimento dos tumores será acompanhada, nos próximos anos, por uma tendência de aplicação de tratamentos mais personalizados. Os remédios terão alvos mais precisos e serão indicados de acordo com as características dos pacientes e dos próprios tumores. Muito já está se fazendo com esse objetivo. No Instituto Ludwig e no Hospital do Câncer de São Paulo, pesquisadores analisam amostras de tecidos tumorais para verificar como reagiram a diferentes tratamentos e procuram desvendar a expressão dos genes e proteínas ligados aos tumores. Isso é a chamada proteômica. “A expectativa é que se consiga criar perfis de expressão gênica para saber como cada tumor reagirá a determinadas drogas”, diz o médico Agnaldo Anelli, do Hospital do Câncer. A próxima etapa será validar essas referências no tratamento e acompanhamento dos pacientes. Que esse futuro chegue em breve.
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Bebê a caminho? |
Após um tratamento de câncer, muitas mulheres não têm mais condições de engravidar. Na semana passada, um trabalho publicado na revista The Lancet mostrou que há esperança para essas pacientes. Cientistas americanos revelaram que conseguiram transplantar tecido ovariano numa mulher de 36 anos. O tecido tinha sido retirado da paciente seis anos atrás, antes de ela passar por uma quimioterapia para combater um tumor de mama. Os ovários da voluntária voltaram a “funcionar”.
A quimioterapia pode provocar a menopausa precoce. Ou seja, o organismo pára de fabricar hormônios necessários à gestação. Para contornar esse problema, médicos do Hospital Presbiteriano de Nova York retiraram tecido do ovário de uma paciente. O material foi congelado e permaneceu guardado seis anos. Três meses depois do transplante, os ovários estavam “reativados”. Os especialistas conseguiram retirar dos ovários 20 óvulos. Um deles foi fertilizado e implantado na paciente. Mas a mulher não engravidou. Apesar disso, os médicos acreditam que a técnica poderá ser usada em pacientes que sonham ser mães. Para os pesquisadores, a experiência foi positiva porque mostrou que as mulheres podem preservar sua fertilidade por meio do congelamento de tecido ovariano.
Também na semana passada, outro trabalho americano revelou um grande potencial para restaurar a fertilidade feminina. Pesquisadores do Hospital Geral de Massachusetts e da Escola Médica de Harvard demonstraram em roedores que os folículos (precursores dos óvulos) continuam sendo produzidos mesmo depois do nascimento. O que a ciência sempre pregou é que as fêmeas já nascem com um número predeterminado de folículos. Quando eles acabam, termina a produção de óvulos. Resta saber se o fenômeno observado nos animais se repete com o organismo feminino. Se isso se comprovar, pode-se tentar encontrar uma maneira de estimular a criação de novos folículos, aumentando as chances de fertilidade.