17/03/2004 - 10:00
Depois de seis anos (de 1996 a 2000 e de 2002 a 2004), Luiz Antônio Guimarães Marrey deixará, no final deste mês, o comando do Ministério Público paulista. Aos 48 anos, Marrey planeja voltar a exercer as funções de procurador no Tribunal de Justiça de São Paulo e assegura que mesmo fora do comando da instituição irá continuar na briga por um Ministério Público independente, com poderes para conduzir investigações criminais e autonomia para enfrentar o crime organizado e a corrupção. “É preciso manter a linha de independência que conquistamos. Quem mais ganha com isso é a sociedade. Temos absoluta certeza de que o MP tem contribuído para o aprimoramento da cidadania em todo o País”, diz. Em seu amplo gabinete no centro de São Paulo, onde recebeu a reportagem de ISTOÉ, Marrey lembra com orgulho uma visita recebida em setembro do ano passado: a paquistanesa Asma Jahangir, relatora especial da ONU para casos de execuções sumárias. “Em seu relatório, a relatora da ONU fez menções elogiosas ao nosso trabalho”, comemora. De fato, durante a entrevista, Marrey relata como, sob seu comando, o MP tem conseguido punir policiais envolvidos com o crime organizado e enfrentado grupos de extermínio incrustados nas polícias em várias cidades.
Apesar de todos os bons resultados, Marrey está terminando seu
terceiro mandato exatamente no momento em que começa a se
perceber uma pressão política no sentido de diminuir o poder do
Ministério Público. “É lamentável que isso venha de alguns setores
do PT, partido que sempre defendeu e brigou por um Ministério Público com autonomia”, afirmou. Outra preocupação do procurador é o chamado discurso agressivo apresentado por autoridades policiais. Segundo ele, esse tipo de discurso pode ser compreendido, na ponta da linha, como incentivo a uma onda maior de violência.
Só temos a lamentar. Entendemos que o fato de o Ministério Público promover investigações criminais diretamente só favorece o interesse público. Ninguém quer substituir o trabalho das polícias nem temos estrutura para isso. Mas queremos, em casos selecionados, poder apurar fatos que a polícia não tenha apurado ou não tenha interesse em apurar. Ações assim têm impedido a impunidade, têm evitado a tortura e até mesmo a proliferação de grupos de extermínio.
Notamos que, particularmente em São Paulo, em razão das investigações sobre o assassinato do prefeito de Santo André, parcelas de políticos ligados ao PT, que sempre apoiaram o trabalho do Ministério Público, têm se manifestado contra a nossa atuação. Penso que antes de se manifestar deveriam aguardar as decisões do Poder Judiciário.
O problema é que não se tratam apenas de manifestações. O que temos ouvido aqui e acolá é a intenção de não permitir que o MP tenha a possibilidade de investigar. Mesmo que haja o inconformismo de setores do PT em relação ao que se passa em Santo André, o Ministério Público não vai recuar e quem apostar nisso está atentando contra o interesse popular. Não se pode, por conta de um problema localizado, investir contra a instituição como um todo. De 1988 para cá, o MP tem contribuído muito para o aprimoramento da cidadania em todo o País.
A discordância começou no momento em que promotores que trabalham no caso receberam informações que desmentem a versão de que teria havido apenas uma extorção mediante sequestro. Aprofundaram essas informações e concluíram que houve um homicídio encomendado em razão dos problemas encontrados na administração da prefeitura. Há pessoas que não se conformam com isso.
Exatamente. Mas nossa missão é buscar a verdade, esteja ela onde estiver.
Não quero generalizar. Mas é verdade que o PT frequentou no Brasil inteiro os gabinetes dos promotores durante muito tempo, levando denúncias e informações. Durante esse período, o PT foi um defensor do MP no Congresso, contra a lei da mordaça e contra a diminuição dos poderes do Ministério Público. Portanto, é incompreensível para nós que alguns setores do partido agora mudem de posição por conta de um caso concreto.
É verdade e lamentamos, porque essas posturas eram costumeiras em políticos de outros partidos. Gente que sempre procurou politizar determinadas investigações em vez de buscar a verdade e contribuir para isso. É lamentável perceber que alguns políticos
gostam do Ministério Público quando apura questões relativas a seus adversários, mas quando se trata de atuar sobre um fato atribuído
a seus aliados não se sentem confortáveis em relação à independência e à atuação da instituição.
Se houver uma conjunção de forças políticas que resolva cortar as atribuições da instituição, ela prestará um menor serviço à comunidade em geral. Quanto à questão do controle externo, o Ministério Público não é contrário, desde que seja feito de maneira própria. Não pode se transformar em instrumento de pressão indevida.
Há momentos em que o MP e as polícias trabalham juntos e há momentos de profundas divergências. Mas conseguimos criar um grupo de controle da atividade policial que tem atuado de maneira bastante ativa. Muitos casos foram apurados a contento, evitando torturas e até a proliferação de grupos de extermínio. Numa luta pela construção de um país civilizado, acho que temos tido a coragem de fazer nosso papel.
Temos um caso emblemático na região do Vale do Paraíba. O grupo do MP que atua na repressão ao crime organizado desvendou uma conexão grande entre policiais civis e jogos de azar. Eram crimes que ocorriam de maneira muito clara, mas os organismos policiais simplesmente não estavam apurando.
Tanto em Ribeirão Preto como em Guarulhos constatamos a existência de grupos de extermínio com efetiva participação de policiais civis e militares. Em ambos os casos demos publicidade às investigações e temos conseguido a punição dos bandidos.
Em Guarulhos, a apuração avançou com mais facilidade.
Temos 11 policiais denunciados, quatro policiais presos e há 27
inquéritos em andamento. Em Ribeirão Preto, as apurações caminham com grande dificuldade. Temos apenas um policial civil denunciado, 20 inquéritos e há uma grande quantidade de homicídios cuja autoria nem sequer foi apurada.
Há má vontade das autoridades policiais da região. Um oficial da Polícia Militar chegou a declarar a um jornal local que nossas investigações estavam levando ao aumento da criminalidade em Ribeirão Preto, como se dissesse: pelo fato de os policiais estarem sendo investigados eles estão reprimindo menos os outros crimes. Isso é inaceitável.
Desde o momento que a existência de um esquadrão da morte virou notícia, segundo me informam os promotores de lá, houve uma queda de 50% no número de homicídios com as características de extermínio: pessoas encapuzadas, que invadem casas durante a madrugada e matam muitas vezes quando as vítimas estão dormindo. Houve, então, uma queda desses homicídios em Ribeirão Preto. Isso indica que a noção está correta e o fato de isso chegar ao conhecimento público provocou essa queda.
Os outros crimes têm aumentado cerca de 30%. E com certeza há indicativos de relação entre as duas coisas, o que é perigoso para a democracia.
Veja bem, lamentavelmente há uma grande demora na apuração e consequentemente na punição daqueles que participam de grupos de extermínio. Então, podemos supor que eles deixaram de matar em virtude das nossas ações, mas também deixaram de punir os demais crimes. E isso é muito perigoso. O fato de ter havido a queda nos extermínios não nos permite tolerar a impunidade. Está é uma situação preocupante. Nenhuma instituição pública pode agir ou deixar de agir por boa vontade ou má vontade.
O problema de discurso mais agressivo é que pode ser entendido na ponta da linha como uma autorização para ações
mais violentas.
O Ministério Público sempre combateu os bingos, por entender que eles já eram ilegais e por compreender que eles se prestam à lavagem de dinheiro. Essa é uma atividade que tem relações internacionais extremamente suspeitas.
Isso é o mesmo que justificar os empregos das empresas que fabricam produtos piratas, legitimar o tráfico, o contrabando.
Essa é uma questão conceitual. As pessoas são contra ou a favor do jogo. Algum tipo de jogo legal já existe, mas entendo que a jogatina é um mal. É a drenagem de recursos de pessoas humildes pela ilusão. Isso gera viciados tal qual o alcoolismo. Não vejo benefício na difusão dos jogos. Não fosse pela lavagem de dinheiro, mesmo assim veria com cautela os jogos, ainda que explorados pelo poder público.