Cinco horas da tarde. A sala de Armínio Fraga, no 20o andar do Banco Central em Brasília, está cheia. Dois diretores e uma chefe de departamento despacham decisões de última hora. O procurador negocia suas férias, enquanto as secretárias entram e saem do gabinete levando e trazendo pilhas de papéis para serem assinados. O presidente do BC não pára. Mas ele não reclama. “Estou muito feliz”, garante Fraga, que há dez meses vem duelando com o mercado financeiro para reduzir a cotação do dólar. Até agora, não matou nem morreu. “A situação ainda não é satisfatória”, admite o presidente do BC. A batalha o agrada. “Eu tendo a respeitar o mercado e tenho uma visão liberal da economia e da política”, define-se Armínio Fraga, discípulo de Pedro Malan e Mário Henrique Simonsen. “Sou ortodoxo, mas não dogmático.” Entre reuniões e o embarque apressado num vôo para o Rio, Armínio Fraga falou a ISTOÉ por exatos 70 minutos em sua sala. Disse que dará um novo aperto no sistema financeiro e anunciou mudanças no sistema de liquidações de bancos. “Não estou satisfeito e quero mudar. Já começamos uma revisão em todas as liquidações e, no ano que vem, teremos novidades”, antecipou.

ISTOÉ – Quando o sr. veio para o governo, dizia-se que estava triste em Nova York, trabalhando com George Soros. O sr. está feliz no governo?
Fraga

 Quando o sr. veio para o governo, dizia-se que estava triste em Nova York, trabalhando com George Soros. O sr. está feliz no governo?
 

ISTOÉ – O sr. chegou ao Banco Central com a economia em polvorosa e o câmbio fora de controle. Seus objetivos de curto prazo já foram atingidos?
Fraga

Naquela altura do jogo, havia uma enorme incerteza e a coisa podia caminhar para uma instabilidade maior. Acho que caminhamos bem, mas a situa-ção atual ainda não é satisfatória. Vejo o trajeto até aqui com um futuro promissor, mas não dá para parar de remar, não.

ISTOÉ – Está cedo para comemorar?
Fraga

Está cedo, ainda.

ISTOÉ – Já se pode dizer que o câmbio se estabilizou em algo entre R$ 1,80 e R$ 2,00?
Fraga

É difícil fazer essa avalia-ção. Num primeiro momento, o que se viu foi um certo pânico. Hoje, o câmbio é de R$ 1,86 e os analistas têm opiniões divergentes sobre isso. A esta altura, já não temos razão para adjetivar o mercado. É possível que no ano que vem haja uma apreciação do câmbio. É possível que outros fatores pressionem na outra direção. O câmbio é esse aí.

ISTOÉ – Estamos tão vulneráveis quanto antes, na hipótese de uma nova crise?
Fraga

Nós tínhamos um déficit primário que assustava muito e com razão. Hoje, temos superávit primário superior a 3% do PIB. Os investimentos de longo prazo são mais do que suficientes para financiar o déficit em conta corrente (resultado dos gastos externos do País com bens e serviços). Inexiste dependência de capitais de curto prazo. Estamos numa situação mais robusta. Mas é ilusão achar que se houver um grande problema nós não seremos afetados. Seremos.

ISTOÉ – Mas os juros, apesar das quedas ao longo do ano, continuam muito altos. Isso não é um sinal claro de que a economia brasileira permanece doente, para depender de um remédio tão amargo?
Fraga

 Essa é uma boa pergunta, que nós sempre nos fazemos. Hoje temos uma taxa de juro real muito mais baixa do que a que vigorou nos últimos anos. Eram taxas médias de 20% e hoje estamos olhando para uma taxa de juro real de 10% ou 12%. Então, já houve uma queda. Ainda é uma taxa alta, mas espelha nossa história recente. Espero que o Brasil caminhe para taxas de juros mais normais e temos trabalhado para reduzi-las na ponta. Mensalmente, na Internet (www.bcb.gov.br), oferecemos um acompanhamento estatístico das taxas.

ISTOÉ – Aliás, as medidas do BC para reduzir os juros ao consumidor deram ao sr. muita popularidade, uma coisa inédita para presidentes de bancos centrais.
Fraga

O presidente de um banco central, tipicamente, não faz parte do dia-a-dia da população. Quero crer que se nós colocarmos o País na trajetória de crescimento com estabilidade estaremos fazendo um bem ao povo e o povo reconhecerá. Eu sou um técnico e faço um trabalho técnico olhando para o longo prazo.

ISTOÉ – Mas o sr. também tem sido elogiado pela habilidade política.
Fraga

Fico feliz, porque tivemos um ano cheio. Nem sempre o trabalho foi fácil, com CPI do Sistema Financeiro. Mas foi um ano produtivo. Vejo um final feliz de um processo que foi muito intenso.

ISTOÉ – Como é o relacionamento entre um Congresso que quer gastar e um governo que não pode gastar?
Fraga

 Eu não tenho a vivência do dia-a-dia do Orçamento. O que posso dizer é que o nosso compromisso fundamental é com a transparência, com o realismo. O Orçamento não é só uma peça econômica, é também uma peça política porque centraliza, numa sociedade democrática, a discussão sobre o que fazer com os recursos. E quando não se respeita o Orçamento, na verdade não se respeita a democracia. Mas não pode haver ilusão: o dinheiro sai de algum lugar. Eu disse uma vez, de brincadeira, que o dinheiro sai do meu, do seu, do nosso… Isso é fato.

ISTOÉ – O Congresso tem reclamado da falta de recursos.
Fraga

Não é justo achar soluções que acabam desmoralizando o próprio Orçamento. Nosso papel não é decidir para onde vão os recursos. Nosso papel é chato, é o papel do contador. E ninguém gosta do contador.

ISTOÉ – E hoje os recursos são poucos por causa do superávit?
Fraga

Não. Os recursos, na verdade, são finitos. O Brasil arrecada muito, mas isso não é suficiente para resolver todos os problemas. Infelizmente, o País é carente e a solução dos problemas é gradual. O modelo antigo, com déficit primário e inflação, nós já testamos e vimos que não é interessante. Estamos querendo algo muito melhor.

ISTOÉ – Esse novo modelo defende a abertura comercial, que foi travada na reunião da OMC em Seattle. O que o sr. achou daquele episódio?
Fraga

Achei lamentável, porque representou uma pausa num processo importante. Nós defendemos a abertura, mas uma abertura equilibrada. Queremos ter condições de comprar e vender com mais liberdade. Espero que se possa reverter esse quadro.

ISTOÉ – O sr. acredita que as sociedades e os povos são todos iguais e devem dividir o mesmo sistema econômico?
Fraga

 A troca é livre. Ninguém é obrigado a trocar. Algumas sociedades podem decidir não trocar – Coréia do Norte é um exemplo. É uma opção de cada povo. Acho que é um bom negócio para o Brasil. Vejo isso como uma oportunidade para nós, sem nenhuma dúvida. É uma coisa que acontece uma vez a cada século. E o Brasil pode ter um ganho duplo. Primeiro, porque vamos melhorar nosso padrão de vida nos aproximando das lideranças da economia mundial. Segundo, porque essas próprias lideranças estão crescendo a um ritmo acelerado. É um momento favorável e esse ganho está a nosso alcance.

ISTOÉ – Num relatório recente, o Banco Mundial (Bird) já fala em “fadiga de reformas” na América Latina. Os países pobres já não estão cansados de fazer o dever de casa e não melhorar suas notas na globalização?
Fraga

Eu não li o relatório, só li o que saiu nos jornais. E fiquei surpreso, porque a pessoa que deu as declarações (Uri Dadush, diretor do Bird) não levou em conta o que vem sendo feito no Brasil nos últimos anos. Fomos capazes de produzir uma virada no comportamento fiscal, transformando um resultado equilibrado num superávit de 4% do PIB, pelo conceito primário.

ISTOÉ – Mas o sentido da expressão “fadiga de reformas” trata do futuro, diz que os países não têm mais fôlego para uma nova rodada de reformas.
Fraga

Não tem sido nossa história recente. Com todas as nossas crises, o Congresso tem continuado a apreciar as reformas.

ISTOÉ – Mas só aprova em meio a crises, com a faca no pescoço.
Fraga

Não é verdade. Aprovou agora a reforma do INSS com toda a tranquilidade. Eu aposto que o Congresso vai aprovar uma boa reforma tributária…

ISTOÉ – Vão demitir o Everardo Maciel (secretário da Receita Federal) ou destituir o deputado Mussa Demes (relator da reforma), que vivem às turras?
Fraga

(Risos) Essa é uma colocação estapafúrdia. Há um entendimento quanto ao objetivo final que é um IVA (Imposto sobre Valor Agregado). O que se discute é a operacionalização disso. Vamos olhar para a frente: vejo com otimismo a reforma da previdência do setor público, a reforma tributária e a lei de responsabilidade fiscal.

ISTOÉ – O Congresso não tem sido tão otimista. As lideranças da própria base governista lembram que há eleições pela frente e a agenda pode não ser favorável.
Fraga

Eu não quero contestar autoridades, mas aposto na continuidade das reformas. Muitas já foram feitas, portanto a agenda diminuiu, o que é bom.

ISTOÉ – Por falar em otimismo, o sr. continua comprometido com o crescimento de 4% do PIB no ano que vem?
Fraga

Continuo comprometido com as metas de inflação (8% em 1999, 6% em 2000 e 4% em 2001). Essa é a minha missão. Eu creio que esse cumprimento é compatível com uma taxa de crescimento em torno de 4%. Continuo achando que isso é viável.

ISTOÉ – Como o sr. se define como economista?
Fraga

Eu me vejo, do ponto de vista mais amplo, econômico e político, como uma pessoa de inclinações liberais, no sentido clássico do termo. Como economista, não me considero dogmático. Sou um economista ortodoxo, mas não dogmático.

ISTOÉ – Isso significa o quê?
Fraga

Eu não tendo a acreditar que tudo é perfeito. Eu vejo situações que não são competitivas, eu vejo assimetria de informações, problemas de transição, problemas de credibilidade… Eu tendo a respeitar o mercado e tenho uma visão liberal da economia e da política.

ISTOÉ – A CPI dos Bancos acabou em pizza?
Fraga

Não. Nós mudamos, de lá para cá, muitas regras, com restrições ao risco cambial que cada instituição pode correr. E estamos também prestes a incorporar parâmetros para risco de taxa de juro. Mas não dá para garantir que o País nunca mais vai ter problemas na área financeira. O que nós estamos procurando fazer é reforçar a saúde do sistema. Sendo justo, esse trabalho já vinha ocorrendo. A situação do Marka e do FonteCindam foi um acidente. Foi anormal.

ISTOÉ – O sr. não acha que o veto do Senado à indicação de Teresa Grossi para a diretoria de Fiscalização do BC azedou um pouco as relações com o Congresso?
Fraga

Não quero falar sobre isso.

ISTOÉ – O BC está exigindo que os bancos se capitalizem mais. Isso não põe travas e tira munição do mercado financeiro, por exemplo, para emprestar?
Fraga

Nós estamos trabalhando em algo muito mais permanente. Estamos pensando hoje no que vai acontecer daqui a cinco anos. É um trabalho de prevenção. Não é do interesse do Brasil que ocorra um boom financeiro que acabe desembocando numa nova crise. Não queremos uma bolha de crédito. Estamos liberando o sistema, de um lado, e reforçando as regras prudenciais: essa é a estratégia.

ISTOÉ – O sr. está satisfeito com o atual sistema de liquidação de bancos falidos, que é administrado pelo Banco Central?
Fraga

Não estou e quero mudar. Cria-mos um novo departamento com a idéia de que, separando isso da fiscalização, teremos uma atuação mais focada nesse problema. É uma área que temos como prioritária. Já começa, hoje, uma revisão do funcionamento das liquidações e, certamente, no ano que vem apresentaremos propostas de novidades, sim.

ISTOÉ – O que é que está errado?
Fraga

O problema é que as liquidações são muito lentas e só beneficiam o banqueiro.

ISTOÉ – Está na mesa a idéia de lei-loar as massas falidas?
Fraga

Existem vários modelos e eu ainda não posso detalhar.