17/03/2004 - 10:00
Em meio a uma situação de penúria orçamentária, as Forças Armadas brasileiras estão sendo obrigadas a “fazer mais com menos”, na definição do ministro da Defesa, José Viegas. Para isso, Exército, Marinha e Aeronáutica estão redescobrindo sua função social, como nos tempos do marechal Rondon, atuando cada vez mais em meio às populações desassistidas dos rincões do País. “Não há emergências no Brasil em que os militares não tenham se mobilizado em 24 horas”, diz Viegas. Aliadas à idéia dessa volta às origens, as Forças Armadas enfrentam necessidades prementes de modernização tecnológica, em alguns casos sob a ameaça de abrirem flancos devastadores à segurança, como no caso da substituição dos velhos caças Mirage III, baseados em Anápolis e que patrulham o espaço aéreo de Brasília. Mesmo assim, o Ministério da Defesa não descuida da inserção do País nas missões de paz, como a que o Conselho de Segurança da ONU aprovou para o Haiti. Lá, depois de o presidente Jean-Bertrand Aristide ter sido deposto, as Nações Unidas deverão enviar uma Força de Paz que pode ser liderada pelo Brasil. Em entrevista exclusiva a ISTOÉ, o ministro Viegas falou sobre esses e outros assuntos na quarta-feira 10 em seu gabinete.
ISTOÉ – O Brasil precisa modernizar suas Forças Armadas, está
no final de um processo para a compra de caças supersônicos
e ao mesmo tempo sofre com a escassez de recursos. Como equacionar isso?
José Viegas – A falta de dinheiro não se verifica apenas nas Forças Armadas. É o reflexo de uma situação ainda de escassez nas diversas áreas do governo. A atitude que temos de tomar é a de fazer mais
com menos.
ISTOÉ – Isso é possível?
Viegas – Nos últimos 15 meses, as Forças Armadas têm se desdobrado nas ações sociais. Não há emergências no Brasil em que as Forças Armadas não tenham se mobilizado em menos de 24 horas, desde incêndio em Roraima, inundações no Amapá até o caso de derrames tóxicos em Minas Gerais e no Espírito Santo. Há também o apoio ao Programa Fome Zero, a implantação de cisternas no semi-árido, o transporte de água. São inúmeros os exemplos, sem contar as ações sociais do Programa Calha Norte e os navios-hospitais da Marinha, sobretudo na periferia amazônica. Então, há um desdobramento muito grande de nossas ações sociais.
ISTOÉ – E investimentos?
Viegas – Estamos criando duas brigadas do Exército. Uma brigada de infantaria de selva, que vai se localizar na região da Cabeça do Cachorro, no Amazonas, e a brigada de operações especiais, que está localizada em Goiânia (GO). Com menos recursos, estamos até mesmo expandindo.
ISTOÉ – E mesmo com essa carência o governo vai anunciar no início de abril a compra de 12 aviões supersônicos para a FAB?
Viegas – Do ponto de vista orçamentário, o programa FX não coloca nenhuma despesa em 2004. Depois que for definida a empresa
ganhadora no processo de escolha, nós negociaremos um contrato
de financiamento. O impacto será distribuído ao longo dos anos, não há um ônus que recaia integralmente no orçamento de 2004 e só um pequeno ônus em 2005.
ISTOÉ – Segundo a FAB, nossos atuais Mirage III só têm condições de vôo até o final de 2005. Ficaremos sem defesa aérea até que cheguem os novos caças?
Viegas – Precisaremos de uma esquadrilha de caças que sirva num período intermediário até que os aviões escolhidos no processo
FX sejam incorporados à Força Aérea. A escolha desses aviões que servirão por três ou quatro anos será feita depois da seleção do avião que será comprado.
ISTOÉ – Algumas empresas que disputam o projeto FX já ofereceram aviões para suprir esse período intermediário.
Isso terá um peso na escolha do avião?
Viegas – Não. Toda a documentação já preparada pela Força Aérea, que está agora sendo analisada por uma comissão especial e que vai ser objeto da decisão do Conselho de Defesa Nacional, visa à aquisição de 12 aviões. Em toda essa documentação não existe nada a respeito de aviões extras. São coisas absolutamente distintas. Mas, quando soubermos quais serão os aviões definitivos, é evidente que isso poderá facilitar a escolha dos aviões intermediários.
ISTOÉ – Essa comissão especial não estava prevista no processo de escolha e, nos bastidores, tem sido criticada por empresas que participam da disputa. O que levou à criação dessa comissão?
Viegas – O desejo de que os integrantes do Conselho de Defesa Nacional estejam bem informados para que a decisão seja tomada com base sólida, em informações objetivas. A comissão trabalha com as informações já compiladas pela Aeronáutica apenas para assessorar os membros do Conselho de Defesa e não tem nenhum poder resolutivo. As empresas já apresentaram suas propostas finais em novembro. Isso está totalmente congelado. Não há como turbinar as propostas.
Estratégia
ISTOÉ – Mas há membros dessa comissão que reclamam não
ter acesso às informações do relatório da FAB.
Viegas – O relatório está sendo posto quase integralmente.
ISTOÉ – O que falta?
Viegas – As notas dadas aos aviões.
ISTOÉ – Por quê?
Viegas – Porque a divulgação precoce dessas notas dificultaria a condução do processo. Prejulgaria, tiraria a liberdade dos ministros, de maneira que isso tumultuaria a escolha.
ISTOÉ – Há pressões para que a Embraer, embora participe da disputa em parceria com os franceses que oferecem o Mirage 2000-5BR, venha a trabalhar com qualquer que seja o vencedor?
Viegas – Isso não é fato. É uma interpretação dascabida. Em todos os meus comentários, faço referências à indústria nacional como um todo. Não tenho especificado nenhuma companhia. Se o consórcio da Embraer não ganhar a disputa, haverá uma decisão que só caberá à Embraer tomar. Será uma decisão livre, sem nenhuma interferência de qualquer nível de governo. É uma decisão empresarial. O que tenho dito e
reitero é que no contexto da negociação com o vencedor do processo
de escolha o governo irá se empenhar em assegurar as melhores condições de participação à indústria nacional. É preciso que se gerem empregos no Brasil.
ISTOÉ – Para garantir isso, é mais importante a transferência tecnológica ou os offsets (contrapartidas comerciais)?
Viegas – Não temos critérios de pesos prefixados. Esse equilíbrio será feito pelos próprios integrantes do Conselho, a partir do trabalho da comissão especial. Um avião não envolve apenas uma indústria. É um conjunto enorme de indústrias. Vamos buscar o maior grau possível de participação da indústria nacional.
ISTOÉ – É verdade que se trabalha com a hipótese de a transferência tecnológica ser feita para o Centro de Tecnologia Aeroespacial, que, posteriormente, repassaria essa tecnologia às empresas nacionais?
Viegas – Isso não procede. O CTA não faz avião. O CTA está engajado no programa espacial.
ISTOÉ – O programa espacial será favorecido pelo projeto FX?
Viegas – São duas coisas separadas. Inteiramente separadas uma da outra. Não há correlação entre a decisão do FX e a decisão do programa espacial. São dois assuntos totalmente separados.
ISTOÉ – Não há, nos pacotes apresentados pelas empresas
que disputam a venda dos caças, questões relativas ao
programa espacial?
Viegas – Não. E isso seria irrelevante. São dois assuntos separados.
São dois processos de decisão separados.
ISTOÉ – Embora esteja localizado na América Latina, o Haiti não se insere, tradicionalmente, na área de preocupações geopolíticas do Brasil. No entanto, o País deve liderar a Força de Paz da ONU para o Haiti, enviando um contingente de 1.100 militares, que é o maior desde a nossa participação na Força de Paz de Angola, nos anos 90. Como se explica essa proeminência?
Viegas – A definição do número de integrantes da Força de Paz para o Haiti dependerá da decisão que a ONU ainda deverá tomar. A resolução do Conselho de Segurança sobre o Haiti encarregou o secretário-geral, Kofi Annan, de sugerir as definições, o mandato e a estrutura dessa força. Então, os números que temos manuseados ainda são aproximados; estamos pensando em 1.100, mas poderá ser um pouco mais, um pouco menos. Quanto ao desejo do Brasil de participar, não é a primeira vez que isso se manifesta. Temos uma razoável história de participação em Forças de Paz da ONU, desde o Batalhão de Suez, nos anos 50, até o Timor Leste, que teve início em 1999.
ISTOÉ – Mandamos para o Timor Leste, por exemplo – que é um país com o qual o Brasil tem laços bem mais fortes –, apenas um pelotão de 70 soldados da Polícia do Exército…
Viegas – No Timor, a participação do Brasil é menor porque a própria Força de Paz é menor. O Haiti fica na América Latina, uma das prioridades de atuação diplomática do Brasil, ao lado da comunidade dos países de língua portuguesa. É bom ressaltar que o prestígio da participação
dos soldados brasileiros é muito grande, temos muita cooperação com
os países em que atuam as Forças de Paz. A participação brasileira é sempre muito bem recebida pelas populações locais e permite que as Nações Unidas tenham uma implantação superior. Nós esperamos
que no Haiti essas esperanças que tivemos em Angola, Moçambique, Timor Leste, se confirmem.
ISTOÉ – Houve consenso em torno da escolha do Brasil para
chefiar a Força de Paz?
Viegas – Talvez seja cedo demais para se falar em consenso, mas
houve uma série de sugestões nesse sentido: do secretário-geral,
do presidente Jacques Chirac e de outras pessoas da comunidade internacional. Colhemos, nos EUA e na Europa, essas manifestações
de interesse e procuramos responder positivamente, porque não deixa
de ser um grande prestígio, para o Brasil, ser cogitado e até comandar uma Força de Paz dessa envergadura.
ISTOÉ – Quem vai arcar com as despesas?
Viegas – A ONU faz o ressarcimento das operações, de modo que nós estamos aqui fazendo as equações de custo para que esse ressarcimento possa cobrir uma parte substancial dos gastos.
ISTOÉ – Há uma estimativa?
Viegas – Ainda não. É caro, mas, como há o ressarcimento, a médio prazo esses valores compensam pela entrada de recursos internacionais.
ISTOÉ – Havia uma expectativa, no Timor Leste, de que o Brasil participasse do treinamento das Forças Armadas do país. Como evoluiu essa situação?
Viegas –
Isso está em evolução. Ainda neste mês, tivemos a visita do ministro da Defesa e do chanceler do Timor Leste e falamos sobre isso. Eles nos apresentaram pedidos modestos, até pela modéstia da capacidade deles; pediram para enviarmos quatro instrutores e eu imediatamente dei um parecer favorável para isso.