17/03/2004 - 10:00
Ainda tímida em suas estratégias fulminantes, a publicidade do início do século passado costumava lançar mão de rimas e versos como atrativo para o público feminino. Um anúncio de revista datado de 1903 usava o exemplo da adolescente Lolota para contar as vantagens do Colette Marie Antoniette. “A Lolota, um diabrete/Que tem onze anos apenas/E é a mais linda das morenas/ Deixou de pintar o sete/Só por ter ganho um colette/Destes Marie Antoniette!”, dizia o texto. O “colette” em questão não é aquela peça que normalmente se sobrepõe a uma camisa. Trata-se do malfadado espartilho, acessório íntimo talhado para esculpir cinturas de vespa. Da mulher que se sujeitava a apertar o ventre a ponto de não poder provar qualquer acepipe nos salões mundanos à celebridade que hoje se vangloria dos mililitros de silicone implantados nos seios, modas vieram e foram, mas na essência pouca coisa mudou. Pelo menos é a conclusão a que se chega depois de se percorrer os três andares da exposição O preço da sedução – do espartilho ao silicone, em cartaz no Itaú Cultural, em São Paulo, a partir da quarta-feira 17.
Reunindo 130 obras de arte de nomes como Eliseu Visconti, Antonio Gomide, Di Cavalcanti, Ismael Nery, Lasar Segall, Tarsila do Amaral, Alberto Guignard, Cândido Portinari, Carlos Vergara, João Câmara e Nazareth Pacheco, a mostra se completa com 300 objetos entre
roupas, acessórios e itens de toucador e cerca de 145 revistas, além
de trechos de filmes. Denise Mattar, curadora da exposição, identificou sete grandes períodos, cada qual definindo os contornos de um tipo de feminilidade: o espartilho e as outras formas de “tortura” (até os anos 1910), os anos loucos (década de 1920), a volta à ordem (década de 1930), os anos dourados (décadas de 1940 e 1950), os anos rebeldes (décadas de 1960 e 1970), o culto ao corpo (anos 1980 e 1990) e a era do silicone (dias atuais).
Na entrada de cada segmento, um painel faz uma verdadeira desconstrução da mulher enfocada, esmiuçando da cabeça aos pés suas técnicas de embelezamento. Fica-se sabendo, por exemplo, que, de acordo com os preceitos românticos, a dama do início do século XX costumava acentuar as veias próximas dos olhos com lápis azulado e realçar de rosa as orelhas com um produto chamado cochonilha. Embora tangencie o tema, Denise faz questão de enfatizar que o propósito da exposição não é apresentar uma história da moda. “O objetivo final é fazer as pessoas pensarem sobre esse preço que é a obrigação de a mulher se adaptar a cada período. Existe uma navalha cortando de fora a fora a exposição.”
Nesta operação cirúrgica, o mais interessante é observar como a arte ocupa uma posição privilegiada, ora vindo a reboque da ideologia da época, ora se mantendo crítica diante dos ditames explícitos que a publicidade e o cinema incutem. No primeiro segmento, por exemplo, dominado pelo academismo, duas telas exemplificam o tipo de leitura sugerida pela mostra. Vista de costas, a modelo gordinha de Rodolfo Amoêdo, retratada em Nu (c.1885), pode ser confrontada com a esbelta Dame a la rose (c.1905), de Belmiro de Almeida, mostrada com a cinturinha desenhada pelo espartilho. A mulher dos anos loucos, cuja silhueta longilínea aparece sem maiores constrangimentos na tela modernista Mulher sentada com ramo de flores (1927), de Ismael Nery, ocupa lugar de destaque.
Embora a representação do corpo feminino já viesse se afastando da mera reprodução com as figuras distorcidas de Tarsila, Segall e Portinari, foi nos anos 1960 e 1970 que o viés crítico ganhou primeiro plano na figuração surgida no embalo da pop arte. Tirando a roupa (1967), de Claudio Tozzi, Use para ser querida de todos (1966), de Rubens Gerchman, e Ela usa Darling (1967), de Ubirajara Ribeiro, têm como ponto de partida a publicidade de roupas íntimas. Cada vez mais questionadora das formas de dominação, a arte contemporânea fecha a mostra colocando em xeque o estereótipo da dondoca. Obras como o vestido feito
de lâminas de barbear, de Nazareth Pacheco; o sutiã de acetato com imagens de bocas eróticas, de Fanny
Feigenson; e o tabuleiro de xadrez de Cecília Medeiros, cujas peças
são vidros de esmaltes, soam como um alerta à mulher de hoje,
que nas palavras de Denise Mattar se livrou do espartilho, mas se tornou escrava da boa forma.