O negócio é tão grande quanto complexo. A maior cervejaria do mundo em volume de produção surge da aliança entre a brasileira AmBev e a belga Interbrew. Juntas, sob o nome provisório de InterBev, formam um gigante que vale US$ 21 bilhões, empregam 70 mil pessoas e está presente em 32 países (sendo líder ou vice em 20 deles). Anunciada na quarta-feira 3 em Lueven, na Bélgica, a transação coroa a estratégia de internacionalização da maior cervejaria brasileira, nascida há cinco anos da fusão das então arqui-rivais Brahma e Antarctica.

O passo é gigantesco. A AmBev vai se manter como uma empresa independente, assim como a Interbrew, e ficará responsável pela gestão dos negócios do novo grupo nas três Américas, a partir da sede em São Paulo. “Agora vamos atuar da Patagônia ao Alasca”, disse o co-presidente do Conselho de Administração da companhia, Victorio de Marchi. A canadense Labatt, que divide com a Molson a liderança do mercado local e tem negócios importantes nos Estados Unidos e no México, passa a ser gerida pela AmBev. “Eu sempre acreditei que a AmBev avançaria no mundo, nunca tive dúvidas disso”, afirma De Marchi. “Mas conquistar essa posição no mercado canadense nesse momento superou qualquer expectativa. Sozinhos, não conseguiríamos”, avalia o executivo, remanescente da Antarctica.

Os belgas serão donos de uma fatia maior da companhia que surgirá da aliança, mas o controle será compartilhado em partes iguais entre os acionistas brasileiros, representados pela Braco S.A., e as três famílias belgas donas da Interbrew. De Marchi rejeita a avaliação de que a AmBev tenha sido vendida, como muito se falou. “Fizemos uma aliança e um acordo de acionistas garante o partilhamento do controle. Na administração moderna, o conceito patrimonialista não vale mais.”

Saga – A Braco é composta pelos investidores Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira. Juntos, os três formavam o coração do Banco Garantia, famoso pelas aquisições de empresas para posterior venda nos anos 80 e 90. A saga que colocou três brasileiros no comando da maior cervejaria do mundo (que só perde em valor de mercado para a americana Anheuser-Busch, avaliada em US$ 43 bilhões) começou no Rio de Janeiro, em 27 de outubro de 1989. O Garantia assumiu, das mãos do alemão Hubert Gregg, a Companhia Cervejaria Brahma. A empresa dividia o mercado brasileiro com a rival Antarctica, mas carecia de investimentos e patinava sobre práticas ancestrais de administração. Desde 1980, a marca Skol pertencia ao grupo. Marcel Telles, escudeiro de Lemann no Garantia, assume o comando executivo do negócio, promove uma mudança radical no estilo de gestão, impõe uma agressiva estratégia de marketing e transforma a Brahma na cerveja “número 1” do País no início dos anos 90.

A AmBev surge uma década depois. Cacifados pelo ótimo desempenho
da cervejaria, Lemann, Telles e Sicupira, já sem o banco (absorvido
pela casa de investimentos suíça CSFB), conseguem o impossível: unir Brahma e Antarctica sob o mesmo teto. Terceira maior cervejaria do mundo e dona de 72% do mercado brasileiro, a AmBev nasce pronta
para enfrentar o mundo globalizado, repleto de predadores ávidos por adquirir empresas brasileiras.

O presidente Fernando Henrique Cardoso “abençoa” a companhia em cerimônia no Palácio do Planalto. O negócio passaria por um longo e controvertido processo de aprovação no Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência (Cade). Em 2000, a fusão acaba sendo aprovada, com pequenas restrições (venda da marca Bavaria, hoje com a Molson, e de algumas unidades fabris). As marcas Brahma, Antarctica e Skol (hoje líder de mercado) permanecem juntas.

Apesar do predomínio da trinca de investidores no capital da empresa, a gestão da companhia passaria a ser compartilhada entre eles e a Fundação Antônio e Helena Zerrenner, dona da Antarctica. O conselho de administração, uma instância que tem poder de veto sobre as decisões executivas, é dividido no meio entre os dois grupos. Prevalece, no entanto, o estilo Garantia de administração, prático e agressivo.

Lemann, Telles e Sicupira atingem agora o olimpo do mercado cervejeiro ao assumir 25% do capital e 50% da gestão de uma nova companhia, batizada provisoriamente de InterBev. Essa empresa, controlada majoritariamente por três famílias belgas, passa a controlar a Interbrew, uma gigante européia com origem no século XIV, e a Ambev. Em troca, os brasileiros entregam sua participação na AmBev, numa transação avaliada em US$ 11 bilhões. A Fundação Zerrener não entra no negócio, por questões estratégicas e fiscais. Telles e John Brock, presidente da companhia européia, brindam a aliança com suas marcas preferidas – Brahma e Stella Artois –, que, com a Beck’s, formarão a trinca de marcas globais da nova companhia. Assumindo um papel semelhante ao da Antarctica no passado, os brasileiros terão direito à metade dos assentos no conselho de administração.

Felicidade – “A AmBev é a jóia da coroa do mercado sul-americano. Qualquer cervejaria internacional sonhava se juntar a ela”, disse Brock, da Interbrew, ao The Wall Street Journal. Os brasileiros, por sua vez, conquistam posições em mercados praticamente inatingíveis, como o europeu e o asiático. A felicidade de Brock não se refletiu entre todos os analistas do setor. Muitos consideraram a operação muito dispendiosa para a Interbrew. Outros mal conseguiram digerir a complexa estrutura acionária montada para a operação. As ações das duas empresas oscilaram bastante desde 27 de fevereiro, quando surgiram os primeiros rumores do negócio. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), responsável por manter a ordem no mercado acionário brasileiro, vai investigar o vazamento de informações. “Assim que detectarmos o problema, informamos à CVM”, disse de Marchi.

A fusão deve provocar uma economia anual de US$ 350 milhões à AmBev, graças a sinergias com sua nova parceira global. As empresas são complementares em vários aspectos. Cada uma atua em uma parte diferente do mundo, e assim permanecerão. A Interbrew é reconhecida pela sua capacidade em fomentar marcas de alcance mundial, algo que falta à AmBev. A companhia brasileira tem a fama de ser muito eficiente na distribuição e agressiva na gestão financeira, algo que falta aos belgas. A transferência do controle da canadense Labatt abre grandes chances, segundo o principal executivo da AmBev, Carlos Brito. “Nossos profissionais terão grandes oportunidades com a aliança”, prevê.

O negócio foi anunciado horas depois de divulgado o balanço de 2003. O lucro diminuiu um pouco, para R$ 1,41 bilhão, contra R$ 1,51 bilhão em 2002. Telles disse que, apesar da queda, tem confiança na postura de longo prazo da empresa. Até porque será o último balanço de ano inteiro com a configuração antiga da AmBev, sem as novas incorporações.

As difíceis negociações começaram em outubro de 2003. Reuniões em São Paulo, Londres e Bruxelas envolveram acionistas, advogados, executivos, representantes de bancos, consultores… Um batalhão de gente trabalhando a partir da idéia surgida numa conversa entre Telles e um membro da família Van Damme, uma das três que controlam a Interbrew. Eles haviam se conhecido casualmente em 1992, quando ambos controlavam promissoras cervejarias regionais. Na época, conversaram descompromissadamente sobre planos de expansão. Eles chegaram lá. Hoje, são donos da maior cervejaria do mundo.