Amalfadada invasão do Iraque, iniciativa conjunta de americanos e britânicos, continua a trazer dores de cabeça para o primeiro-ministro britânico, Tony Blair. Primeiro, foi o imbróglio das nunca encontradas armas de destruição em massa: o suicídio do especialista em armas David Kelly causou uma ferrenha disputa entre o premiê e a BBC (rede de rádio e televisão pública britânica). Mesmo com o veredicto do juiz Lord Hutton, que obrigou a BBC a se retratar publicamente e foi considerado uma vitória política para Blair, as dúvidas sobre a conduta de seu governo no pré-guerra não cessaram. E na quinta-feira 26, a ex-ministra de Desenvolvimento Internacional, Clare Short, jogou mais lenha na fogueira ao afirmar que o secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, foi espionado por agentes da inteligência britânica durante as discussões diplomáticas que antecederam a intervenção unilateral de britânicos e americanos contra o Iraque, em março de 2003.

A ex-ministra Clare Short é do mesmo partido
de Blair, o Trabalhista, e fazia parte do governo
até maio, quando saiu do gabinete ministerial justamente por se opor à invasão do Iraque.
Na entrevista à rádio BBC (sempre ela…),
Clare disse que leu transcrições de conversas reservadas de Annan e que as escutas ocorriam com frequência. “Eu mantinha conversas com
Annan um pouco antes da guerra, pensando: ‘Haverá uma transcrição disso e as pessoas
vão saber o que eu e ele estamos dizendo.’”
Ela afirmou que o governo britânico utilizava os espiões no escritório de Annan para obter relatórios sobre o que acontecia nos bastidores diplomáticos. À época, os EUA e o Reino Unido empenhavam-se em obter o apoio (não concedido) do Conselho de Segurança da ONU para a intervenção militar.

O premiê Tony Blair reagiu imediatamente às acusações de Clare, qualificando-as de “irresponsáveis”. No mesmo dia, em Downing Street 10 (sede do governo britânico), onde fazia sua coletiva de imprensa mensal, Blair afirmou que os serviços secretos de Sua Majestade – o MI-5, a contra-espionagem, e o MI-6, a inteligência exterior – agem sempre de acordo com as leis, tanto as britânicas quanto as internacionais. “Não vou comentar o trabalho de nossos serviços de segurança. Mas não tomem isso como indício de que as acusações de Clare sejam verdadeiras”, afirmou o premiê.

O secretário-geral Kofi Annan disse que, caso as acusações de espionagem sejam verdadeiras, a ONU exigirá o fim das escutas, já que elas são ilegais. Segundo o porta-voz de Annan, Fred Eckhard, as escutas ilegais enfraquecem o trabalho diplomático da secretaria geral com outros líderes e prejudicam a ONU de uma maneira geral. Eckhard foi irônico e afirmou que o trabalho de Annan é transparente e que, se os britânicos quisessem saber alguma coisa, era só perguntar.

Segundo um ex-secretário-geral da ONU, o egípcio Boutros-Boutros Ghali, escutas no escritório da secretaria geral são não só incomuns como são até “um tipo de tradição”. “Qualquer país que tenha capacidade tecnológica para fazer escuta fará. É lamentável, mas é a realidade.”

Em todo caso, Blair que se cuide. As explicações sobre as razões da guerra no Iraque continuam na pauta política britânica. Um dia antes da entrevista de Clare Short, o procurador-geral do Reino Unido, Lord Goldsmith, arquivou um processo contra Katharine Gun, ex-tradutora do Departamento de Comunicação do governo. Katharine era acusada de vazar um e-mail em que funcionários americanos pediam ajuda aos britânicos para espionar escritórios da ONU. “Eu segui a minha consciência para tentar impedir uma guerra ilegal contra o Iraque”, argumentou a tradutora.