03/03/2004 - 10:00
Casal gay comemora união em San Francisco, cidade tradicionalmente liberal, onde o prefeito Gavin Newsom autorizou o matrimônio de pessoas do mesmo sexo Mais de três mil pares de homens e mulheres se casaram oficialmente na prefeitura da cidade de San Francisco, de 14 a 25 de fevereiro. Enfrentaram chuva, frio, longas filas e xingamentos para cumprir ato aparentemente tão prosaico. E, deste modo, colocaram combustível numa fogueira de paixões capaz de chamuscar o futuro político dos Estados Unidos. A particularidade que distinguiu esses matrimônios é que os casais não eram heterossexuais. Homens se uniram legalmente a homens e mulheres fizeram o mesmo com companheiras femininas. Da Califórnia a Massachusetts, passando por um pequeno condado do Novo México, milhares de gays ameaçam repetir o ?I do!? (Eu aceito!), subvertendo os conceitos americanos tradicionais do matrimônio. Tomando a bandeira da contra-revolução, das hostes conservadoras ? e, na verdade, também de gente liberal ?, o presidente George W. Bush foi à Sala Roosevelt da Casa Branca para declarar novamente sua oposição ao certificado desse tipo de união. Deu um passo além: conclamou o Congresso a aprovar uma emenda constitucional proibindo casamentos entre indivíduos do mesmo gênero. Assim, escancarou-se a maior polêmica social no país desde a garantia constitucional ao direito do aborto, em 1973. A brecha para os casórios homos foi aberta pela Suprema Corte de Massachusetts, pelo prefeito Gavin Newsom, de San Francisco, e pela oficial de cartório Victoria Dunlap, uma republicana do Novo México, que tomou a iniciativa de emitir certidões de casamentos para os homossexuais. Os dois últimos estão enfrentando desafios em tribunais, que podem acabar com o festival de núpcias. Coube a Bush empunhar a bandeira da reação. EFE/Arleem NG Reação: o presidente e a mulher, Laura, um sincero casal conservador Não há solução rápida ou fácil para a questão. Uma emenda na Carta Magna americana é tarefa dificílima. Para ser aprovado, o remendo exige maioria de dois terços das duas casas do Legislativo. No cenário atual, a medida seria abortada, para maior desespero da direita religiosa, que reza e luta na cruzada pela exclusividade do matrimônio hetero. Ainda que 219 deputados (quórum mínimo para a mudança) votassem a favor e 67 senadores lhes seguissem o exemplo, a lei teria de ser ratificada em nada menos que 38 dos 50 Estados da União. John Feehey, porta-voz do presidente da Câmara, o republicano Dennis Hastert, diz: ?A liderança republicana dificilmente conseguiria juntar 219 votos a favor desta emenda.? Mesmo assim, a deputada republicana Marilyn Musgrave, do Colorado, apresentou um projeto para tornar inconstitucional os casamentos entre indivíduos do mesmo sexo. Para os gays americanos, o casamento oficial não é apenas um papel. O documento reconhecendo a união de dois indivíduos possibilita uma série de vantagens legais sobre os que simplesmente coabitam. Exemplos: declarações conjuntas do imposto de renda, obtendo descontos exclusivos; garantias sobre heranças; extensão do seguro-saúde do cônjuge; custódia de filhos adotados e direito de visitar o parceiro no hospital ? em certos casos, somente parentes podem fazer isso. E essas são apenas algumas das regalias. ?Tudo isso os casais homossexuais podem conseguir apenas com o que chamamos de união civil ? termo aceito por muita gente, e que teria mais possibilidades de ganhar forma legal definitiva, sem causar tanto conflito?, diz o juiz Howard Elliott, da Corte de Massachusetts. Ou seja: o grande entrave para acomodar a situação é o substantivo ?casamento?. As pesquisas mostram que 60% dos americanos desaprovam a legalização dos casamentos gays. Mas, se a pergunta for fraseada com outro vocábulo para o vínculo, a rejeição cai para 49%. ?É por isso que eu disse que a briga era semântica e sugeri a mudança do nome do ato?, diz o juiz Howard. O problema é que os homossexuais acreditam que essa manobra apenas encobre a discriminação que, em termos de Constituição, não pode existir. E os conservadores, por sua vez, não abrem mão da exclusividade do matrimônio tradicional.
O vice-presidente Dick Cheney e sua mulher, Lynne, apóiam a postura de Bush e por isso jamais levarão ao altar sua filha Elizabeth, lésbica assumida |
O presidente Bush vinha sofrendo crescente pressão de suas bases conservadoras para tomar posição oficial contra a oficialização de casamentos gays. Em janeiro, quando a Suprema Corte do Estado de Massachusetts decidiu que era inconstitucional impedir o casamento de pessoas do mesmo sexo, o caldeirão da direita religiosa transbordou. O discurso de apoio à emenda constitucional veio ligeiro.
“A união entre um homem e uma mulher é a instituição mais duradoura da humanidade. É honrada e encorajada por todas as culturas e religiões”, disse W. Bush. E, justificando a metida de colher nesse assunto, declarou que a nova legislação serviria para impedir que “o significado do casamento seja mudado para sempre”. Ele se esquece que isso acontece a cada
década. Há um século, a mulher que se casasse com um estrangeiro,
por exemplo, perderia sua cidadania. E, até os anos 60, casamentos inter-raciais eram ilegais em muitos Estados.
Grupos de defensores dos direitos humanos e organizações de gays e lésbicas imediatamente acusaram o presidente de estar mirando no casamento para atingir alvos eleitoreiros. Mesmo entre republicanos houve choro e ranger de dentes. A associação Log Cabin Republicans, que diz possuir um milhão de afiliados homossexuais republicanos, fez coro nessa toada. “Não dá para adocicar essa medida. Ela foi desenhada pela direita religiosa radical, numa tentativa de que casais de gays e lésbicas que desejam justiça no imposto de renda e direitos civis inalienáveis não possam tê-los”, disse Patrick Guerriero, diretor executivo da organização. Ele também acredita que a gula por votos fará o tiro de Bush sair pela culatra. “Temos um milhão de gays republicanos em nossa instituição. Somem-se a eles pais, irmãos, primos e amigos. Teremos então alguns milhões de votantes que não concordam com Bush e podem derrotá-lo em novembro”, disse Guerriero.
Trata-se de exagero, claro, pois nem todas as famílias americanas concordam com o estilo de vida de parentes gays. Os Cheneys, por exemplo, são contra o casamento ou outras atividades homossexuais. Dick, o pai de Elizabeth Cheney, é vice-presidente dos Estados Unidos, e a mamãe, Lynne, é figura de proa da direita radical do país. Eles não comentam sobre a vida de Liz, figura popular nas cenas lésbicas de Denver, Colorado. Mas ninguém duvida que a preferência sexual da filha mais velha não é bem-vista em casa. De todo modo, o vice-presidente, que sempre foi de poucas palavras, apenas disse que apoiava qualquer decisão do presidente sobre esse assunto. O que pode significar que jamais levará a filha ao altar ou aceitará ter uma nora.
Por outro lado, duvidar da sinceridade do presidente americano
nessa questão e apontar motivos exclusivamente eleitoreiros parece bastante simplista. W. Bush é um “born again Christian”, ou seja,
alguém que reencontrou sua fé em Cristo. Ele tem a crença superlativa dos recém-convertidos. Faz preces antes de reuniões ministeriais,
vai às missas em sua Igreja Batista e acredita que tem Deus como
co-piloto. Seria de estranhar que não fosse contra os casamentos
entre homossexuais. Desse modo, sua conclamação à emenda constitucional pode ter muito a ver com os votos de 2004, mas é provável que saiu também do coração beato.