03/03/2004 - 10:00
Um caixão, muitos intelectuais, música, discursos, lágrimas, flashes e closes no rosto do cadáver famoso. São cenas que, para quem não estava presente, até agora eram proibidas pela família do polêmico diretor baiano Glauber Rocha, que, em 14 de março, faria 65 anos. Mais de 20 anos depois de sua morte, ocorrida em 22 de agosto de 1981, finalmente as famosas tomadas do velório e do enterro do cineasta, poeta, pintor, escritor, articulista, dramaturgo e todos os etc. cabíveis aparecem inteiras no documentário Glauber o filme, labirinto do Brasil, de Silvio Tendler, que estréia no Rio de Janeiro, em São Paulo e Salvador na sexta-feira 5. “Não fiz esse longa para mostrar trechinhos geniais de filmes ou uma antologia. Mostro o Glauber libertário, o artista e o retrato de uma época”, adianta Tendler. Nas lembranças-homenagens ao criador do filme O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1968), a primogênita Paloma Rocha oferece outra preciosidade: o DVD duplo do histórico Terra em transe (1966), trazendo duas horas de extras dirigidas por ela em parceria com o videomaker Joel Pizzini; cenas inéditas com atores como Jardel Filho, Paulo Autran, José Lewgoy e Glauce Rocha; e o making of das gravações, entrevistas e uma montagem que simula um diálogo entre Glauber Rocha e seus messiânicos, bárbaros, exagerados e doces personagens.
Mas são muitos outros os projetos que marcarão a data de seus 65 anos. No próprio dia 14, está prevista a exibição do clássico Deus e o diabo na terra do sol (1963) no Parque da Previdência, zona oeste de São Paulo, dentro do projeto Cinema no parque. Na televisão, o Canal Brasil exibirá Retrato da terra, produção de Paloma sobre uma longa entrevista do diretor ao amigo e também cineasta Orlando Senna, em 1978, na qual, para não variar, o passional Glauber rasga o coração e fala sobre cinema novo, mercado, morte, Embrafilme e toda sorte de assuntos que na sua voz tornavam-se sempre palpitantes.
Ava Rocha, irmã mais nova de Paloma, ainda imprime um tom internacional às homenagens, ao organizar em Buenos Aires a mostra Da fome ao sonho, com fotos, roteiros inéditos, cartazes e reportagens. E, por último, mas não menos importante, a editora Cosac & Naify prepara biscoitos finos como o romance inédito Adamastor – sobre o mito de Os luzíadas e cujo nome é o mesmo do pai do diretor, Adamastor Bráulio Silva Rocha – e Os diários de Glauber Rocha. Ambos, porém, só serão lançados em 2005. Em 2004, a editora decidiu caprichar nas reedições de Revolução no cinema (1981) e O século do cinema (1985).
Revolucionário – Considerado louco, gênio, revolucionário, original, Glauber Pedro de Andrade Rocha passou seus breves 42 anos entre láureas e pichações, eternizando-se como um dos grandes paradoxos da cultura brasileira. O documentário de Silvio Tendler abre portas para reflexões com depoimentos de quem conviveu com o diretor, por muitos considerado genial e por outros tantos incompreensível. A atriz e cineasta Ana Maria Magalhães conta que, após insultar duramente o colega francês Louis Malle, um dos vencedores da Mostra Internacional da Arte Cinematográfica de Veneza, na qual seu Idade da terra (1978-1980) recebeu críticas negativas, Glauber colecionou tantos desafetos que foi consolado pelo próprio Malle. Arnaldo Jabor sentencia: “Perto do Glauber, nada era normal. Ele criava um clima épico de excepcionalidade.” Há, também, o reconhecimento da segregação. O colega Cacá Diegues endossa: “Até à véspera da morte, ele era uma espécie de saco de pancadas. Só virou personalidade artística por causa de sua morte trágica.” Ele morreu de complicações broncopulmonares. Orlando Senna completa: “Quando estava vivo, ninguém queria saber dele. Esculhambava a direita, a esquerda, todo mundo.”
Os episódios que João Ubaldo Ribeiro revela no documentário de Tendler arrancam muitas risadas e provocam certa polêmica com a família do cineasta. Ubaldo diz que, durante reunião em sua casa, no Rio de Janeiro, Glauber foi fumar um cigarro de maconha no quarto e sugeriu que o escritor discretamente perguntasse a Jorge Amado se ele também queria fumar. Também conta a vergonha que passou quando Glauber, em outra reunião, soltou gases fétidos e fez com que Ubaldo parecesse o autor da flatulência. Por estes e outros incidentes, Paloma Rocha não aprova totalmente a obra de Tendler. “O filme é válido, mas tem coisas que contesto, como a mitificação do Glauber e essa coisa de falar que ele soltava pum, que usava droga. Isso é bobagem e está fora do contexto. A maconha era uma questão cultural da época, um hábito”, diz. A mãe do cineasta, Lúcia Mendes de Andrade Rocha, 85 anos, também protesta. “Isso faz com que a memória dele fique fora de foco.”
Divergência – Tendler entende, mas rechaça. “Elas, como filha e mãe, têm uma visão diferente. Eu quis mostrar o artista. Depois do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro 2003 (no qual Glauber, o filme conquistou os prêmios de crítica e do júri popular), a garotada foi correndo às locadoras alugar os filmes dele. É isso que quero: despertar o interesse.” Material para os aficionados não falta. Na instituição Tempo Glauber, no Rio de Janeiro, presidido por dona Lúcia, há 80 mil documentos inéditos sendo preparados para deleite do público. São cartas, telegramas, anotações de patrocínios, de custos, bilhetes, ensaios, prêmios, desenhos e esboços que estão sendo inventariados pelo professor universitário Lécio Augusto sob o zelo da mãe. “Quando Glauber tinha nove anos, escreveu a primeira peça de teatro e me deu. Eu guardei. E, desde então, guardo tudo dele”, segreda dona Lúcia. Ela também comemora o patrocínio de R$ 3 milhões da Petrobras, que está permitindo a restauração em alta definição de Terra em transe, Barravento (1960-1961) e Idade da terra, todos feitos em preto-e-branco, O dragão da maldade contra o santo guerreiro, em cores, e o lançamento das quatro obras em DVD. Goste-se ou não, Glauber Rocha está entranhado na cultura brasileira.