25/02/2004 - 10:00
As três décadas de tirania dos Duvalier (1957-1986) no Haiti deixaram como herança maldita a perpetuação da miséria, os bandos armados ligados ao poder e a corrupção institucionalizada. Dez anos depois de restabelecer a democracia, o Haiti está à beira de uma guerra civil, e há duas semanas estouraram conflitos armados que já deixaram mais de 55 mortos. Grupos rebeldes tomaram o controle de cerca de 11 cidades do norte do país e exigem a renúncia do presidente Jean-Bertrand Aristide. Na
terça-feira 17, os Estados Unidos deixaram claro que, desta vez, não
se entusiasmam em enviar tropas à ilha caribenha. No mesmo dia, o ministro das Relações Exteriores da França, Dominique de Villepin,
acenou com a possibilidade de envio de uma força de paz ao país,
que foi colônia francesa entre 1697 e 1804.
O Haiti independente não faz jus à glória de ter sido o primeiro país das Américas a libertar os escravos e também a se tornar a primeira nação negra livre, desde que conquistou a independência da França, há exatos 200 anos, sob a liderança heróica de Toussaint L’Ouverture. A história haitiana, cantada por Caetano e Gil e que serviu de espelho para a nossa própria miséria na música homônima, é repleta de invasões e ditaduras. Os americanos usaram os constantes distúrbios para justificar a ocupação da ilha durante o període 1915 a 1934. Entre 1957 e 1971, o país viveu sob o tacão da cruel ditadura de François (“Papa Doc”) Duvalier, que misturava vodu com a violência dos esquadrões da morte – ditos tontons macoutes (bichões-papões, na língua créole). Seu filho e sucessor, Jean-Claude (Baby Doc) Duvalier, acrescentou incompetência à tirania. Em 1986, por pressão americana, a ditadura caiu, mas o vácuo de poder foi preenchido por truculentos e corruptos generais.
Em 1990, o carismático Jean-Bertrand Aristide, ex-padre ligado à Teologia da Libertação, venceu com folga a primeira eleição democrática do país. Menos de um ano depois, ele foi deposto por uma quartelada sangrenta. Mais de 30 mil haitianos tentaram fugir para os EUA, o que levou os americanos, em 1994, a intervir no país e reempossar Aristide. Ele seria eleito novamente em 2000, desta vez num pleito fraudado. Acossado, Aristide recorreu à tática dos Duvalier e armou suas próprias milícias. Mas com 80% da população vivendo abaixo da linha de pobreza e analfabetismo acima de 50%, algumas gangues armadas pelo próprio Aristide se insubordinaram contra ele, no que foram seguidos por militares que participaram do golpe de 1991. Assim, o caos continua castigando o país mais pobre e talvez mais triste das Américas.