O candidato democrata usa as iniciais JFK no punho da camisa e do lado esquerdo do peito. Ele pode: seu nome é John Forbes Kerry. Mas as iniciais são bem mais emblemáticas do que a denominação. Ela lembra aquele outro JFK que, como Kerry, foi senador por Massachusetts e acabou na Casa Branca. O ex-presidente John Fitzgerald Kennedy (1961-63) povoa o imaginário popular americano como uma espécie de Rei
Arthur. John Kerry, aos 62 anos, não tem o mesmo carisma que aquele seu conterrâneo lendário, mas, para os eleitores democratas, ele é a melhor cópia possível, num momento em que o partido necessita desesperadamente de um cavaleiro que destrone aquele que consideram um “usurpador”: George W. Bush. Tendo como patrono ninguém menos que o senador Teddy Kennedy, irmão do ex-presidente e chefe do maior clã liberal do país, Kerry disparou na frente da corrida entre nove aspirantes à indicação do Partido Democrata às eleições presidenciais. Até a semana passada, ele havia vencido 15 das 17 eleições primárias e “caucus” em Estados espalhados pelo país. As pessoas acreditam que ele seja mais “elegível” – adjetivo da moda nesta temporada – e por isso votam nele. Para a maioria dos democratas, pouco importa a plataforma do candidato, contanto que ele vença Bush em novembro.

Kerry ainda não assegurou a indicação do partido. Os Estados que já votaram somam somente um terço dos delegados democratas. E o rival John Edwards, senador pela Carolina do Norte, com mensagem de otimismo populista, fez boa figura em Winsconsin, na semana passada, arrancando 34% dos votos, contra 40% do vencedor Kerry. Embora Edwards tenha vencido apenas na Carolina do Norte, há quem imagine um embate mais apertado e, talvez, até mesmo uma virada de jogo, a partir de agora. “Bobagem! Kerry está praticamente coroado”, garantiu a ISTOÉ o megamarqueteiro político e ex-chefe de campanha de Bill Clinton, James Carville. A decisão mesmo só sairá no dia 5 de março, na chamada Superterça, quando nada menos que dez Estados votam, entre eles os grandes celeiros de delegados: Nova York, Califórnia e Ohio. “A corrida eleitoral, do jeito que está, acaba sendo fantástica para o partido. Com toda esta exposição na mídia e as oportunidades de centrar fogo em Bush, nós acabamos colocando a Casa Branca na defensiva”, diz Carville.

Ele pode estar certo, mas a guerra contra os republicanos ainda não começou para valer. Por enquanto, foram dados apenas os primeiros disparos. E a munição que parte da direita tem é chumbo grosso. Primeiro, afirmaram na internet que Kerry teve um caso com a jornalista Alexandra Polier, que desmentiu a história publicamente. Depois, adulteraram fotos de Kerry, colocando a seu lado num palanque ninguém menos que Jane “Hanói” Fonda, a anticristo dos veteranos do Vietnã, e que se opunha tão abertamente à guerra, que no início dos anos 70 foi a Hanói posar junto a baterias antiaéreas norte-vietnamitas. De fato, John Kerry era contra a guerra e existem mesmo fotos em que ele aparece no mesmo ambiente que Jane, mas a relação dos dois pára aí. O que ninguém pode esquecer é que a determinação contra a guerra veio depois de lutar nela. John foi capitão da Marinha de uma lancha-patrulha no delta do rio Mekong. Arriscou a própria vida para salvar outras. Ganhou três medalhas: a Silver Star, a Bronze Star e a Purple Heart, a última por ferimentos sofridos. Todas as três condecorações foram depois jogadas nas escadarias do Congresso em Washington, num protesto dos veteranos antiguerra. O que ele não descartou foi a amizade de veteranos que o adoram e vão a seus comícios como se ele fosse um parente. “Este foi o segredo da vitória surpreendente em Iowa e New Hampshire, que eram considerados pontos de Howard Dean. Os veteranos puxaram os votos para Kerry”, diz Bobby Muller, presidente da Fundação Americana dos Veteranos do Vietnã. Dean, aliás, que entrou nas prévias como favorito, desistiu na quarta-feira 18. O último milico a engrossar a tropa de Kerry foi o general Wesley Clark, outro ex-concorrente à indicação, que ganhou as votações de Oklahoma. “O Exército pede permissão para subir a bordo, capitão”, disse Clark.

Sul profundo – Kerry perdeu somente no sul – Oklahoma e Carolina do Sul. E aí mora o perigo. J.F. Kennedy teve de vencer em pelo menos dois Estados da região nas eleições principais. J.F. Kerry, teoricamente, teria de repetir a proeza, embora se considere que o território esteja nas mãos de Bush. Se alguém como Clark, que é de Arkansas, é escolhido para compor a chapa como vice-presidente, Kerry tem chances de levar, pelo menos, um Estado sulista, quebrando a barreira de ferro republicana.

O problema de Kerry no sul é que ele é um amálgama de tudo o que os habitantes daquela região detestam: um liberal, do nordeste americano (um ianque, na língua local), pró-aborto, antiarmas, defensor de programas sociais, rico e muito bem-educado. O senador nasceu, na verdade, numa base aérea em Denver, no Colorado, quando seu pai servia como voluntário num esquadrão da Força Aérea na Segunda Guerra Mundial, em 1942. Dinheiro nunca lhe faltou e Kerry foi estudar em colégio em Genebra, quando seu pai fazia parte do corpo diplomático americano na Europa. O curso superior foi feito na elitista Universidade de Yale, a mesma onde W. Bush esteve, dois anos mais atrasado do que John. “Eu me lembro dele em Yale. Bush não mudou nada desde aquele tempo”, disse com desdém o democrata.

Antes do Senado, Kerry foi um promotor temido pela máfia de
Boston, que perdeu vários conseglieri para o acusador incansável.
Em 19 anos de Washington, o senador foi quem primeiro investigou o escândalo “Irã-Contras”, na administração Ronald Reagan (1981-1989), quando o governo dava dinheiro aos aiatolás iranianos em troca de armas para os contra-revolucionários na Nicarágua. Foi também chefe do subcomitê do Senado sobre terrorismo, narcotráfico e lavagem de dinheiro no Oriente Médio.

Carisma – Pena que essa desenvoltura não se estenda ao repertório de expressões faciais do candidato. Ele é a imagem de um robô soturno, e com as mesmas expressões no rosto que o homem de lata. “A campanha o tem deixado mais solto. Ele está mais à vontade e com carisma maior”, garante a deputada por Nova York Carolyn McCarthy. E jogo de cintura era o que não poderia faltar a este homem que, além de ser bom de hockey sobre patins, toca um rock lascado na guitarra e é motoqueiro devoto. Mas algum carisma ele tem de ter, já que conquistou o coração de Teresa, sua segunda esposa, e viúva milionária, com capital no valor estimado em US$ 500 milhões. Ela foi casada com outro John senador, que morreu num desastre de avião em 1991 e era herdeiro da fortuna Heinz, dos fabricantes de ketchup. Maria Teresa Thierstein Simões Ferreira, 65 anos, nasceu em Moçambique e, além do português perfeito, fala outros quatro idiomas. Filha de um médico português famoso, ela, na verdade, nunca precisou de dinheiro alheio. Já corria mundo antes mesmo de conhecer Heinz na Universidade de Genebra. Kerry, ela começou a namorar mesmo numa viagem a latitudes bem mais quentes e românticas: o Rio de Janeiro, onde ambos eram delegados americanos à conferência Eco-92. Se John Kerry arrebatar a Casa Branca, sua primeira-dama vai ter muito o que contar a dona Marisa, quando o presidente Lula for visitar o novo colega.