chamada.jpg

O debate econômico de 2013 começou com uma fantasia ideológica em torno do superávit primário, que é a soma de recursos que o governo economiza para fazer frente à dívida pública. Em 2012, ao constatar que a coluna de despesas subia muito mais que a de receitas, Brasília promoveu um conjunto de operações contábeis para fazer o superávit primário chegar perto da meta inicial de R$ 97 milhões. Pela compra e venda de papéis entre a Petrobras e o BNDES, pela inclusão de recursos do PAC e dividendos da Caixa Econômica, o governo fechou uma conta de R$ 88 bilhões. Mas o artificialismo desse número era tão visível que provocou uma reação amarga até de aliados do ministro da Fazenda, Guido Mantega. O czar do milagre econômico de 1970, Antonio Delfim Netto, definiu a operação como uma “deplorável alquimia” e disse que ela poderia comprometer a “credibilidade” de toda a política econômica.

É óbvio que nenhum governo deve esconder números reais, experiência que contribui para diminuir a confiança na economia e obscurece uma visão confiável sobre as perspectivas de crescimento. Mas a pergunta que interessa é outra: é necessário perseguir o superávit primário de qualquer maneira? O que o País ganha com isso? A resposta é: depende da conjuntura. Os números do superávit expressam opções de política econômica que interessam a toda a sociedade. Podem ajudar na criação de empregos ou no corte de funcionários.

Podem orientar investimentos ou apontar para uma recessão. Não há mágica duradoura em debate. A única forma de aumentar o superávit é cortar gastos e diminuir investimentos. E vice-versa. Em todo caso, são decisões cruciais, seja no Brasil, onde investimentos do Estado têm um papel importante na economia, seja em países desenvolvidos. Estimulada por um pacote de US$ 700 bilhões, a economia norte-americana reagiu depois da crise de 2008, ainda em passos lentos e decepcionantes. Preocupada com o fantasma de inflação, fanatizada pela noção de controle de gastos, a Europa só tomou as primeiras iniciativas de estímulo quando era tarde demais. Quebrou países com saúde relativa, como Portugal, Espanha, Itália e Irlanda e colocou a Grécia, de uma vez, no despenhadeiro.

O superávit caiu em 2012, no Brasil, porque o governo se mobilizou para impedir uma queda maior da economia. O crescimento de 1% mostra que o efeito não foi tão bom como se esperava, mas a vida estaria pior se a economia tivesse sido largada para cair ainda mais – quando o esforço para levantar o crescimento e recuperar a confiança é ainda mais difícil e complicado.

Como demonstram as contas do Banco Central, uma parte crucial do déficit veio de Estados e municípios, que também ultrapassaram sua meta. Quem acha isso ruim deve considerar que a contrapartida seria mudar o rumo de um país onde a renda dos mais pobres não parou de subir e o desemprego fica em 5%. O debate, em parte, não é econômico nem apenas político, mas cultural. Muitas pessoas raciocinam com um reflexo social condicionado, para quem é inevitável jogar a conta dos sacrifícios sobre fracos e desprotegidos.

IEpag66a68_Economia-3.jpg

No início de 2013, a soma das desonerações já realizadas e já contratadas bate em R$ 99 bilhões. Para garantir o corte de 18% na conta de luz depois que as usinas ligadas a Estados governados pela oposição se recusaram a acompanhar o desconto, Brasília irá usar receitas de Itaipu. A perda de receita da Previdência, que chegará a US$ 15 bilhões em 2013, será coberta pelo Tesouro, como a lei obriga. O esforço de seis anos para conter o preço da gasolina, quebrado com um aumento na semana passada, se explica por essa razão. Se a Petrobras fosse uma empresa privada, construída com recursos próprios, seria natural que sua direção só tivesse olhos para o resultado econômico, o bônus de seus dirigentes e os dividendos de acionistas. Sendo uma empresa pública, é aceitável até do ponto de vista ético que devolva ao cidadão uma parcela do que recebeu ao longo da história.

O debate sem fantasias envolve o que irá ocorrer entre 2013 e 2014, o ano em que Dilma Rousseff tentará a reeleição – e a oposição estará mobilizada para conseguir uma primeira vitória após três derrotas consecutivas. É bom entender que a mensagem mudou. Dilma assumiu uma postura – literalmente – oposta àquela que a equipe econômica de Lula manteve durante a campanha de 2002, quando a inflação estava em disparada, o dólar explodiu e determinadas consultorias faziam terrorismo econômico. Num esforço para garantir credibilidade a um governo que ainda não havia mostrado a que vinha, a Carta ao Povo Brasileiro prometia “elevar o superávit primário até onde fosse necessário”. Era uma iniciativa coerente com uma conjuntura de perda de controle, com o dólar nas alturas e o FMI nos calcanhares.

Após a vitória, Lula levantou o superávit para 3,3% em 2003 e 3,5% em 2004, o que ajudou a conter a inflação e criou uma situação favorável ao crescimento. Na hora em que foi preciso enfrentar o desmanche dos mercados depois da crise do Lehmann Brothers, em 2008, o governo agiu numa direção inversa. Abriu as torneiras do crédito e reduziu impostos para o consumo, numa reação tão bem-sucedida que muitas pessoas só ficaram sabendo o que tinha acontecido mais tarde, quando o IBGE divulgou seus números. (O superávit de 2009 foi o mais baixo da história recente: 2% segundo números oficiais, apenas 1% conforme contas teoricamente mais rigorosas.) Após o estouro do cres­cimento em 2010, o governo voltou a elevar o superávit em 2011. Bateu 3,1% do PIB, o que ajuda a explicar o declínio dos últimos anos. Em 2013, mais uma vez o governo irá diminuir o superávit primário “até onde for necessário” – agora para estimular o crescimento. A meta de 3,1% não está valendo mais. Se ficou em 2,4% em 2012, talvez nem chegue a isso em 2013. Isso é possível numa situação de contas equilibradas e números que conversam uns com os outros. A inflação cai pouco de um ano para outro, mas cai. A dívida pública gira em torno de 35% do PIB. Passava de 50% há mais de uma década.

Foto: FREDERIC JEAN/Ag. Istoé