O semestre letivo terminou e a greve dos alunos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo já dura 71 dias sem dar sinais de esmorecimento. O motivo? Falta de professores. Enquanto a média geral da USP é de um docente para 14 alunos, a área de humanas trabalha com um para 36. E há classes com mais de 50 alunos. A crise é quase uma heresia na faculdade-matriz da USP, que recebe 25% de seus alunos e já produziu nomes como o crítico literário Antônio Cândido, a filósofa Marilena Chauí, o próprio presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, e a primeira-dama, Ruth Cardoso. Chamada no campus por FFLCH (fefelech), a faculdade é apelidada, numa forma pouco respeitosa, de parque dos dinossauros. Desde que os alunos resolveram pressionar, a reitoria tem utilizado expedientes pouco adequados para justificar a crise. Além da falta de recursos, o número de mulheres na faculdade – e consequentes licenças-maternidade –, a idade avançada de seus mestres e até o descumprimento da carga horária foram algumas das alegações. Depois de um ato público que reuniu há 15 dias alunos e notáveis da faculdade, a reitoria, alegando limites orçamentários, acenou com a contratação de 91 professores, 45 ainda este ano. Os grevistas pedem o dobro e aproveitaram o desfile comemorativo de 9 de Julho para cercar o governador Geraldo Alckmin, que acabou lhes concedendo uma audiência no dia seguinte. Apesar das duas horas de conversa, o governador se comprometeu apenas a interceder para apressar as negociações. Alckmin alegou várias vezes que as universidades têm autonomia de gestão. Ciro Teixeira Correia, 45 anos, professor de geologia e presidente da Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo (Adusp), afirma, no entanto, que a origem dessa situação não está só na compressão orçamentária.

ISTOÉ – Há motivações ideológicas por trás da crise da FFLCH?
Ciro Teixeira Correia –
Os alunos reivindicam 259 professores e a própria reitoria admite que em termos acadêmicos seriam necessários 178, mas oferece metade disso em três anos. Veja, o orçamento da universidade é de cerca de R$ 110 milhões por mês; contratar pelo menos os 178 professores com salário médio de R$ 4,5 mil significa comprometer apenas 0,8% do orçamento.

ISTOÉ – Como a faculdade de filosofia chegou a esta crise?
Correia –
É preciso analisar o que tem acontecido com a universidade no Brasil. O decreto de autonomia de gestão administrativa e financeira, que surgiu depois da greve de 1988, estabeleceu um porcentual do ICMS, principal imposto do Estado, para as universidades. Na época, USP, Unicamp e Unesp gastavam 11,5% da arrecadação deste imposto, mas fez-se a previsão de 8,4%. Depois esse porcentual cresceu para os atuais e ainda insuficientes 9,57%. As aposentadorias tomam 25% do orçamento. Após a reforma da Previdência, em 1998, muita gente correu para se aposentar e as vagas não foram repostas. O número de professores caiu de 5,5 mil para 4,6 mil. Só a FFLCH perdeu 340 professores em dez anos, enquanto o número de alunos de graduação aumentou 20% e o de pós dobrou.

ISTOÉ – Alguns professores reclamam que a economia e a engenharia mantiveram seus quadros, mas, com pouco dinheiro, não parece lógico priorizar áreas tecnológicas e financeiras?
Correia –
Isso é um equívoco. Se não se desenvolve a área de humanidades, que fomenta o desenvolvimento social e as relações humanas, da diplomacia, prejudica-se a inserção do País em organismos internacionais. Tira-se a capacidade da Nação de aproveitar o pouco que faz na área de tecnologia. Esse modelo é vendido pelas nações desenvolvidas como bom, mas não para elas. É uma ideologia que só faz com que continuemos dependentes. O Estado de São Paulo, o mais rico da Nação, investe em educação superior apenas 0,35% do PIB. A ONU recomenda que um país invista 1% do PIB só na graduação e até 2% em graduação e pós-graduação. A Coréia do Sul, que sediou a Copa, investiu de 2% a 3% do PIB em ensino universitário na última década.

ISTOÉ – E as alegações da reitoria são verdadeiras?
Correia –
Não. Quando não se
quer discutir algo, usa-se a desqualificação para desviar a atenção. É só fazer um cálculo básico para ver que se trabalha muito mais que oito horas. O professor dá aulas, orienta estágios, mestrado, doutorado e pós-doutorado. Se há um que não cumpre a sua parte, é o caso de se denunciar. Apontar quem, quando e onde.

ISTOÉ – Em maio, Alckmin aprovou 1.700 vagas para a USP. Isso não significa verbas extras?
Correia –
Não, essa é uma questão técnica. Pela Constituição, o cargo de professor público tem que ser preenchido por concurso, mas a universidade faz contratos irregulares, que não obedecem nem a CLT nem a administração pública. Há cerca de 1,5 mil contratos precários e a criação dessas vagas serve apenas para regularizar esses contratos.

ISTOÉ – O que o governo federal poderia ter feito para evitar
esta crise?
Correia –
O sociólogo Fernando Henrique é responsável direto pela falta de recursos. Em 1997/98, foi proposto o plano nacional de educação que estabelecia porcentuais do PIB para o ensino. Ele vetou. Se houvesse essa vinculação ao PIB, o Estado teria que se estruturar para cumprir a meta. O ICMS do Estado de São Paulo representa apenas 6% no PIB estadual. É nada. Temos 9,57% de nada.

ISTOÉ – Por que o sr. diz que FHC está tratando a educação superior como privilégio?
Correia –
Em qualquer país sério, educação não é negócio. Na Austrália, só 4% das universidades são privadas. Se o governo exige ensino, pesquisa e extensão, ensino não dá lucro. Aqui há promiscuidade. O governo quer insinuar que há ensino privado de qualidade. Onde isso? Nos EUA, 70% das verbas vêm do governo. Há 30 anos, 70% das vagas do ensino superior no Brasil eram públicas. Hoje, apenas 25% são públicas. No Estado de São Paulo, a relação é de 12% para 88%.

ISTOÉ – E o provão, a avaliação do ensino superior do governo,
não ajuda?
Correia –
Ele faz com que diferenças enormes pareçam pequenas.
Uma escola ruim recebe D, outra que faz pesquisa, tem laboratório, etc é A. Parece pouca a diferença. Esse exame só serve às desqualificadas. Criar políticas rígidas de credenciamento é o meio ideal para evitar as fábricas de diplomas.

ISTOÉ – A FFLCH recebe muitos alunos de classes mais pobres. O sr. acha que isso pesou nessa crise?
Correia –
Não sei se esse tipo de raciocínio perverso existiu. Mas os alunos estão mostrando sua capacidade de mobilização. Os cursos da área de humanas podem ser ministrados à noite, não exigem período integral e abrem possibilidades de formação para as pessoas que trabalham. Isso só aumenta a importância desta faculdade.