17/07/2002 - 10:00
Diante dos integrantes do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), o procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, e o ministro da Justiça, Miguel Reale, ajudaram, na quinta-feira 4, a redigir e a aprovar por unanimidade o pedido de intervenção federal no Espírito Santo. Brindeiro e o então ministro patrocinavam uma cuidadosa operação política que contava com o apoio do Palácio do Planalto para acuar o crime organizado no Estado. Por três vezes, nos últimos 30 dias, o presidente Fernando Henrique Cardoso deu o sinal verde para que Reale tocasse o processo. Na segunda-feira 8, depois de uma audiência com Fernando Henrique, o procurador-geral anunciou ao País, para surpresa geral, que iria engavetar o pedido de intervenção por falta de sustentação jurídica.
O recuo provocou uma crise no governo. Desgastou o presidente, demitiu o ministro da Justiça, desmoralizou o procurador e deixou desamparada a população do Espírito Santo. Só o crime organizado ganhou. A mal explicada guinada, na verdade, encobriu uma ação capitaneada pela candidata a vice na chapa governista, Rita Camata (PMDB-ES), e reforçada pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Apesar de publicamente apoiar a intervenção, no dia seguinte à decisão do CDDPH, Rita telefonou para o ministro Reale e pediu que o processo fosse brecado. Expôs sua preocupação com a reação do grupo político que controla o Estado, liderado pelo governador José Inácio Ferreira (PTN) e pelo presidente da Assembléia Legislativa, José Carlos Gratz, acusado de envolvimento com o crime organizado. O jogo duplo da vice de José Serra causou estranheza. “O Gratz usa chantagem e corrupção para ter reféns nas mãos. Já fez isso com o Executivo. Tem uma história oculta nesse arquivamento”, acusa o candidato ao governo do Espírito Santo Max Mauro (PTB). “Foi adotado um juízo político suspeitíssimo e não um juízo jurídico e ético, calcado nos direitos humanos”, critica o procurador federal Luiz Francisco de Souza. A Abin, que há mais de um ano tenta mapear o organograma do crime organizado no Estado, investe na suspeita de Mauro e também estava no esquema de protelar a intervenção para ganhar mais tempo para as investigações. Na quinta-feira 4, na véspera da viagem à Argentina, FHC convocou o general Alberto Cardoso, que deu seu parecer: “Presidente, estamos a ponto de desvendar o esquema e os nomes de todos os envolvidos com o crime. A intervenção vai jogar no lixo o trabalho.”
O primeiro ato da encenação pública foi na segunda-feira 8, quando Brindeiro, no papel de porta-voz, anunciou o arquivamento do processo. O secretário de Direitos Humanos, Paulo Sérgio Pinheiro, ligou para Reale e combinou uma demissão coletiva. “O Brindeiro está desfazendo tudo. A gente não pode admitir isso. Temos que dar uma demonstração de homem. Você pede demissão e eu saio depois”, disse Pinheiro ao ministro. Perplexo, Reale concordou e, em seguida, telefonou para Fernando Henrique. Em uma conversa áspera, comunicou sua demissão. Para FHC, foi a segunda surpresa indigesta do dia. A primeira foi a entrevista que o procurador deu à imprensa horas antes, que errou o texto e revelou que o presidente mudara de idéia e estava contra a intervenção. A amigos próximos, Brindeiro foi ainda mais indiscreto. “FHC disse que considerava a intervenção politicamente inviável e poderia ser interpretada até como uma manipulação eleitoral para esconder coisas do casal Camata (Rita e seu marido Gerson, senador pelo PMDB)”, confidenciou. Na verdade, Brindeiro submeteu-se a uma orientação política do presidente, numa subordinação inconcebível para o Ministério Público, que deveria ser independente. A debandada no Ministério da Justiça incluiu cinco dos mais importantes auxiliares de Reale, além do diretor-geral da Polícia Federal, Itanor Carneiro. Este último disse a amigos que aproveitou a carona para fugir ao desgaste provocado pelas denúncias de espionagem política na PF. Mas é muito estranho o chefe da PF, um homem de confiança do general Cardoso, deixar o posto numa hora dessas. Já o principal incentivador da rebelião continuou no cargo. A pedido de FHC, Pinheiro abraçou a missão de torpedear Brindeiro. Para Reale, a resposta de FHC veio em uma longa e irritada carta em que o presidente desmentiu o ministro demissionário, afirmando que foi traído e que jamais se reuniu com ele para discutir os problemas do Espírito Santo, a não ser “de passagem, de pé”. Na carta, FHC também confirma que Brindeiro pediu orientação política sobre o caso.
A história do recuo palaciano tem outros pontos obscuros. Três dias antes do anúncio do arquivamento, o governador José Ignácio já anunciava na imprensa local que não haveria a intervenção. Ignácio foi cumprimentar Brindeiro pessoalmente, em Brasília. “Ele soube da decisão antes de mim. Por isso, me atacou diversas vezes.”, acusa o ex-ministro Miguel Reale Júnior. Gratz, indiciado e apontado pela CPI do Narcotráfico “como a figura mais expressiva do crime organizado no Estado”, tripudiou: “Meus inimigos são poucos, fracos e burros.” Também ficou encoberta a participação de uma ex-assessora do presidente e colaboradora de José Ignácio. A ex-deputada tucana Rose de Freitas, que se gaba de ter acesso privilegiado a FHC, contou que na semana passada conversou diversas vezes com o presidente para convencê-lo a abortar a intervenção. “Afronta aos direitos humanos não é caso de intervenção”, afirma a ex-deputada.
Enquanto o trio comemora, o Estado sofre com as barbeiragens de Brasília. Na quinta-feira 11, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara entrou na campanha para ressuscitar a intervenção, respaldada em estatísticas assustadoras, que estão entre as mais alarmantes do País. São 13 mil homicídios sem solução, sendo que, nos últimos dias, 14 autoridades foram ameaçadas de morte, entre juízes, parlamentares e líderes de organizações de defesa dos direitos humanos. Nem mesmo o dramático relato do juiz de direito Marco Antônio de Souza Basílio, do município de Serra, na região metropolitana de Vitória e classificado como o mais violento do Estado, foi capaz de sensibilizar Brindeiro. Dez dias atrás, o juiz foi perseguido por carros da PM local nas ruas de Vitória e tocaiado por pistoleiros, um deles o coronel da PM Walter Gomes Ferreira, integrante da organização criminosa Scuderie Le Cocq, autora de centenas de crimes encomendados no Estado (leia trechos no quadro
ao lado). Ele depôs para os procuradores Luiz Francisco de Souza e Raquel Dodge e foi incluído no Programa de Proteção à Testemunha. Depois do recuo, até os arapongas da Abin, encarregados de
investigar o crime organizado, estão amedrontados. Agora trabalham
sob proteção reforçada.
Banho-maria – Nos bastidores, sabe-se agora que todos os personagens da confusão em torno do Espírito Santo estavam informados de que o Supremo não aprovaria a intervenção, inclusive Reale. Na segunda-feira 1º, três dias antes da reunião do CDDPH, Fernando Henrique chamou Reale ao gabinete. “Afinal, a intervenção no Espírito Santo é viável?” O ministro foi realista: “Não.” Explicou que o prazo era curto e antecipou que a derrota viria pelo voto de desempate do ministro Marco Aurélio, presidente do STF. A intenção era cozinhar o pedido até a posse do novo governador em janeiro de 2003, em uma estratégia de manter o crime organizado acuado e fragilizar a dupla Gratz-José Ignácio. FHC quis checar o diagnóstico e despachou o seu ministro de Segurança Institucional, Alberto Cardoso, para rastrear os humores do Supremo. O general teve uma conversa reservada com o presidente do STF e voltou com a certeza de que o pedido não passaria.
O que deveria ser uma encenação bem ensaiada acabou se convertendo em um retumbante fiasco. O recuo de Brasília detonou uma saraivada de críticas das organizações de defesa dos direitos humanos no Brasil e no Exterior. O CDDPH, até agora um dos mais respeitados organismos de defesa dos direitos humanos, corre o risco de se dissolver. Em protesto, dois dos seus principais integrantes – a Ordem dos Advogados do Brasil e a Associação Brasileira de Imprensa – decidiram boicotar as reuniões até o final do governo FHC. A ONG Transparência Brasil, voltada para o combate à corrupção, soltou nota condenando o recuo: “O episódio enfraquece as instituições e trabalha na direção oposta à da redução da impunidade, por todos desejada”, diz a nota.
Reação de aliados – Nem mesmo aliados do tucanato pouparam Fernando Henrique. “O governo errou com esse arquivamento”, condena Luiz Paulo Velloso Lucas, coordenador de campanha de José Serra, prefeito de Vitória e adversário do governador. A crítica mais dura partiu do próprio candidato tucano, que esteve no Espírito Santo na quinta-feira 11: “Aqui há traficantes com mandato de deputado. Faço um apelo para que o PFL do Estado não dê legenda ao sr. Gratz, que é suspeito de comandar o crime aqui. E, se der a legenda, que o povo capixaba não eleja gente assim.” Até mesmo o novo ministro, Paulo de Tarso Ramos Ribeiro, admitiu logo após assumir o cargo que a intervenção “ainda pode ser cogitada”. Mesmo assim, o advogado-geral da União, Bonifácio Andrada, garante que o Planalto não volta atrás: “A iniciativa da intervenção é exclusividade do procurador-geral.” Com as instituições sob suspeita, a lisura das eleições no Espírito Santo foi posta em dúvida. “O recuo jogou incertezas sobre o processo eleitoral. Podemos esperar tudo”, diz o candidato do PSB ao Palácio Anchieta, senador Paulo Hartung, que seria beneficiado politicamente com a medida. O jogo de empurra engendrado por FHC não é suficiente para evitar que o governo seja responsabilizado por uma nova onda de violência no Estado. Diante da notícia de interferência de Rita Camata no processo de arquivamento da intervenção – e de desconfianças mais cabeludas, como as levantadas pelo deputado Max Mauro –, cabe ao governo dar explicações claras.
Colaboraram: Leonel Rocha e Luiz Cláudio Cunha
Amigo há 35 anos de FHC, o jurista Miguel Reale Júnior saiu rompido e desancando o governo. Acusado de traidor por FHC, diz que sua saída foi resultado de uma fritura “em microondas.”
ISTOÉ – O que aconteceu?
Miguel Reale Júnior – Não estou entendendo. Pode ser acordo, medo. O presidente não esclareceu nada. Ele me disse que era uma questão jurídica, que o STF não aceitaria a intervenção.
ISTOÉ – Ele comunicou isso ao sr.?
Reale – Não me telefonou. E eu estava em lugar certo e sabido. Não entendo o (Geraldo) Brindeiro sair de lá, ser o porta-voz do Planalto e dizer que não ia ter mais a intervenção.
ISTOÉ – Como o sr. soube do arquivamento?
Reale – Me ligaram contando que a tevê noticiou. Não acreditei, disse que eles estavam loucos. Tentei confirmar. Liguei para o Ministério e para FHC.
ISTOÉ – E o que FHC disse?
Reale – Que não era com ele, que era tudo coisa do Brindeiro. Que o Estado estava passando por uma crise financeira e política com repercussões graves.
ISTOÉ – E o sr. respondeu o quê?
Reale – Que eu estava saindo, não tinha mais jeito. Ele perguntou como poderia compensar isso. Respondi que não adiantava me prestigiar depois que eu já tinha sido desprestigiado. Qualquer manifestação seria como um band-aid em uma fenda cirúrgica. A não-intervenção desmoraliza o governo e prejudica a chapa oficial.
ISTOÉ – Há interesses ocultos?
Reale – O que me leva a fazer uma avaliação política é a rapidez inusitada para um caso desta importância. O Brindeiro deveria se chamar Expedito.
ISTOÉ – E agora? O crime venceu?
Reale – A derrota do impeachment na Assembléia colocou o José Ignácio (governador) contra a parede, e o deputado (José Carlos) Gratz (presidente da Assembléia) controlando exatamente 28 dos 30 deputados. Sabíamos que José Ignácio não era um dos agentes do crime organizado. Ele era refém.
ISTOÉ – O sr. chegou ao Ministério dizendo que o governo
estava começando.
Reale – Para mim, o governo acabou porque não representa mais um instrumento de solução na área de segurança. Fica numa situação delicada, não adianta dourar a pílula. O fato principal é o acordo entre FHC e Brindeiro para arquivar a intervenção. Se ficasse no governo, estaria pilotando uma nau esfrangalhada. Todos que se opuseram ao crime de forma frontal foram mortos.
O governador do Espírito Santo, José Ignácio Ferreira, estará quarta-feira 17 em Londres, onde se encontrará com a direção da organização Anistia Internacional. Ele vai expor o caso de seu Estado, acusado de ser palco da violação constante dos direitos humanos e de ser dominado pelo crime organizado. O governador disse que levará uma série de documentos que, segundo ele, provam a ação efetiva das autoridades no combate ao crime e ao desrespeito aos direitos humanos. José Ignácio contou que durante sua administração afastou mais de 100 policiais implicados em delitos ao mesmo tempo que promoveu a modernização das polícias Civil e Militar. O governador levará também um relatório recentemente elaborado pela Unesco que aponta o Espírito Santo e a Bahia como os dois únicos Estados brasileiros que conseguiram reduzir a taxa de criminalidade e de violência policial em mais de 20%.
José Ignácio atribuiu a tentativa de intervenção à ação de forças que dominaram o Estado no passado e querem retomar o poder. Lembrou que ele próprio foi cassado pelo governo militar por defender, como advogado e militante político, os direitos humanos de presos políticos capixabas. “Quando assumi o governo do Estado, encontrei o Espírito Santo numa situação caótica. Imperava a desordem administrativa e a corrupção generalizada. Posso afirmar com indignação que não existe, tal como ocorre de fato em outros Estados, nenhum governo paralelo afrontando a autoridade.” O governador disse que uma das figuras que defendem a intervenção é o atual presidente da OAB local, Agesandro da Costa Pereira, que mantém vínculos com a Scuderie Le Cocq, instituição paramilitar acusada de atuar no Estado. Ignácio disse que documentos e atas pertencentes à Le Cocq, apreendidos pelo Ministério Público, revelam que, além de ser homenageado com um título pela organização em 21 de novembro de 1990, na comemoção dos 25 anos da Scuderie, Agesandro, em 1997, quando disputava apertada reeleição para a OAB/ES, triênio 1998/2000, participou de uma reunião com 42 advogados associados à organização no Clube Náutico Brasil de Vitória. Na ocasião, relembrou o governador, ele pediu e obteve o compromisso de receber aqueles 42 votos, desde que indicasse para a sua chapa o nome do então presidente da Le Cocq, o advogado José Almério Petroneto. Agesandro venceu e Petroneto integrou o conselho da OAB.
Mário Chimanovitch