17/07/2002 - 10:00
Elza Soares é mesmo dura na queda. Filha de uma lavadeira com um operário, criada na favela Água Santa – no bairro carioca de Engenho de Dentro –, vivenciou certo romantismo do morro ainda sem violência, mas não escapou de suas armadilhas. Aos 12 anos já era mãe e aos 18, viúva. Como sempre gostou de exibir a voz rouca, o destino a levou para a ribalta. Tardiamente, no entanto, lançou seu primeiro disco, em 1960, trazendo Se acaso você chegasse, de Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins, música que se transformou em sucesso nacional e até hoje é seu carro-chefe. Ao longo da mesma década, saboreou a fama doce da vida artística e amarga na pessoal ao protagonizar um rumoroso romance com o histórico jogador campeão de futebol Garrincha. Na década seguinte, teve uma carreira errante e nos anos 80 tentaram reerguê-la anunciando-a como a Tina Turner tropical, tentativa que se perdeu na poeira. Em 1986, perdeu o filho Garrinchinha e, daí para a frente, continuou assunto de artistas consagrados, mas, contraditoriamente, bem distante de qualquer contato mais popular. O sucesso de Elza Soares gira em outras esferas, como prova seu mais novo álbum, o impecável Do cóccix até o pescoço, no qual ela exerce toda sua negritude cantada em versos e melodias.
Abre o CD o samba de Chico Buarque, Dura na queda, espécie de retrato da artista de biografia conturbada, mas que, como o próprio título avisa, não se deixa afetar por infortúnios. Nem mesmo pela dificuldade de gravar e lançar um trabalho felizmente acolhido pelo selo independente Maianga Discos. E Elza comemora com Hoje é dia de festa, de Jorge Ben Jor, num festim de vozes e percussão. Haiti, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, resume em poesia o manifesto negro da intérprete, que se alia à linguagem do rap paulistano e aos matizes frígidos do som eletrônico, aquecidos pelos surdos virados e tocados por Carlinhos Brown. Dor de cotovelo, inédita de Caetano, reforma uma Elza Soares com toques de Lupicínio Rodrigues. “O ciúme …dói da flor da pele ao pó do osso/rói do cóccix até o pescoço”, lamenta a cantora, acompanhada pela delicadeza de cordas e discreta percussão.
Bambino, delicioso chorinho de Ernesto Nazareth com letra de José Miguel Wisnik, alivia o protesto na sequência de A carne, do trio Marcelo Yuka, Seu Jorge e Wilson Cappellette. “A carne mais barata do mercado é a carne negra”, determina ela, em total sintonia com a modernidade dos beats eletrônicos. Eu vou ficar, de Arnaldo Antunes, com participação do grupo Funk Como le Gusta, na percussão pontua um samba enquanto guitarras e baixo chacoalham um funk. Resultado: casamento black cheio de power. Em Etnocopop, a usina percussiva de Brown, o autor, arromba a cena numa verdadeira explosão nuclear em conjunto com a voz poderosa da cantora. Mais adiante, em Todo dia, a bandeira da favela vem hasteada contra um cotidiano massacrante em versos aqui emoldurados pela ginga do rap e pelos scratches do DJ Cia, num perfeito comungar de gerações entre a intérprete e o autor ABM Aguiar, garoto do Morro do Vidigal. Prova de que a negritude de Elza Soares pode ser sênior, mas nunca foi nem nunca será júnior.