A sonoridade é o Santo Graal de qualquer músico ou produtor de música popular. Capaz de fazer Hermeto Pascoal gravar sua flauta dentro de uma gruta, com a água até a barriga, ou levar Gilberto Gil até a Jamaica em busca do estúdio, dos músicos e de outras coisinhas que fizeram de Bob Marley o que ele foi. Há décadas, o ex-mutante Arnaldo Baptista repete o mantra de que amplificadores devem ser valvulados e as guitarras, da marca Gibson. Pois, quanto mais avança a tecnologia de captação de sons – hoje teoricamente capaz de registrar uma formiga se arrastando na Lua – mais puros e originais devem ser estes sons. Tal preocupação com o resultado obriga o músico a ir atrás do instrumento ideal, o que raramente se confunde com o mais moderno. Aí se explica a excelência dos violinos Stradivarius. No caso de instrumentos tradicionais, pesam a qualidade da madeira, a cola, o verniz, a preocupação artesanal. São os chamados instrumentos vintage, de boa safra, palavra roubada da enologia, que vem se transformando em onda curtida por músicos que almejam o melhor som. Lulu Santos, por exemplo, tem uma guitarra Rickenbacker de 12 cordas igual à de George Harrison. Herbert Vianna, uma Gibson de dois braços, como a que Jimmy Page utilizou para gravar Stairway to heaven, e assim vai.

Vintage também se aplica aos instrumentos eletrônicos. Ed Motta não abre mão de um piano elétrico Rhodes ou de sintetizadores analógicos Mini Moogs para realizar seus apurados grooves (estilo, balanço). A música eletrônica, tal como se conhece hoje em dia, surgiu quando DJs de Detroit começaram a utilizar baterias eletrônicas analógicas, descartadas por outros músicos por serem “inumanas” demais. Ou seja, sem querer estes DJs foram vintage antes do tempo ao utilizar estas baterias para criar o atual som das pistas. Mais do que um estilo, vintage é uma atitude. Se você não tem a sorte de encontrar um instrumento antigo abandonado ou não tem dinheiro suficiente para comprar um outro a peso de ouro – devidamente carimbado de vintage –, as fábricas de instrumentos estão começando a lançar cópias batizadas de “históricas” e “collector’s item”, vendidas a preço mais em conta.

Para o eternamente moderno Tom Zé, a cada ano os timbres vêm sendo reciclados, pois a rapaziada consegue realizar arranjos e obter sonoridades de maneira nova. Segundo o compositor e cantor baiano, todo ano a indústria faz o mesmo com as cores, com os tecidos, com o corpo das mulheres, por que não com a música? O músico só se irrita quando o assunto é o formato acústico, que para ele não passa de uma repetição de outra forma. “Eu nunca fui acústico, toco meu samba, meu baião com invenção”, garante o inventor do HertZé, um sampler – simulador/reprodutor de sons – que montou em 1978 utilizando fitas magnéticas de gravador de rolo, que hoje foram trocadas por MDs – mini-CDs – infinitamente mais práticos.

Neste campo, a digitalização do som ajudou muito os adeptos do vintage. Em seu mais recente álbum, Frantic, Brian Ferry incluiu um Virginal, espécie de cravo, algo impensável em tempos passados. A facilidade oferecida pelos computadores portáteis e de estúdio também permitiu ao rouquenho Tom Waits ousar em seus dois discos recém-lançados de uma só tacada, Alice e Blood money, recheados de canções escritas por ele e por sua mulher, Kathleen Brennan, para duas peças teatrais dirigidas pelo badalado Robert Wilson. De laptops em punho, o normalmente bagunçado Waits conseguiu coordenar os dois projetos e teve tempo para cavar instrumentos adequados às suas intenções. Entre outros, um Chamberlin de 1963 – espécie de piano cujas 35 teclas, em vez de martelarem cordas, acessam fitas gravadas em três pistas com diferentes sons e ritmos – e um Stroh violin, violino dotado de uma corneta semelhante à de um gramofone, afixada onde as cordas são presas, usado para aumentar o volume do instrumento, antes do advento dos microfones. “Quando ouço a palavra obsoleto, fico ligado!”, diz Waits. Pois, quando deixa de ser obsoleto, o instrumento vira vintage, ou seja, é reconhecido como especial e tem seu preço catapultado. Waits foi esperto e comprou seu Chamberlin por meros U$ 400.

Alfredo Bello, o DJ Tudo, é outro que costuma pagar barato pelos teclados encontrados em igrejas e estúdios abandonados. Baixista, pesquisador, sociólogo de formação, o mineiro conserva em sua casa seis mil discos de vinil junto a teclados vintage que costuma utilizar nas bandas das quais participa. Há exemplos ainda mais antigos. Em 1965, quando John Lennon chegou no estúdio com a música Norwegian wood pronta para ser gravada, George Harrison teve a idéia de usar uma cítara indiana no solo. Nem precisa dizer que o timbre novo enlouqueceu os grupos de então. Meses depois, Brian Jones, dos arqui-rivais Rolling Stones, acrescentou à delicada Lady Jane um Appalachian Dulcimer, instrumento de cordas tocadas com uma pluma. Ultravintage.

George Martin, o famoso produtor dos Beatles, valeu-se de sua experiência com o grupo para organizar Fazendo música – o guia para compor, tocar e gravar (Editora UNB, 456 págs., R$ 45), que chega ao Brasil depois de duas décadas. O curioso é que o livro – recheado de gente como Eric Clapton e Jeff Beck falando de guitarras; Paul McCartney, de baixo; Gary Brooker e Herbie Hancock, de teclados; e Steve Gadd, de bateria – cobre justamente o momento no qual os teclados eletrônicos estavam em alta e a tecnologia digital começava a ser adotada nos estúdios. Martin fala de instrumentos, à época considerados de ponta, que hoje voltaram a ser avidamente utilizados por modernos, entre eles Beck, Stereolab, Tortoise e Medesky, Martin & Wood, que tratam Tom Zé como “maestro”.

Mensagem – O “maestro”, que acaba de entregar a trilha sonora de Santagustin, novo trabalho do Grupo Corpo – em que homenageia Hermeto Pascoal, Heraldo do Monte, Paulinho Nogueira e Yamandú Costa – dá sua mensagem para os jovens. Segundo ele, a moçada tem de fuçar mesmo, ir atrás da década de 70, buscar sons no passado, no futuro e nas laterais. “Procurar desinências, conjugações e pontos cardeais.” São palavras de quem surgiu para a fama ao lado de Rita Lee, cantando 2001, em 1968, acompanhado de um Theremin construído por Cláudio César Dias Baptista, o irmão geninho de Sérgio e Arnaldo Baptista dos Mutantes. Tratava-se de uma cópia fiel do aparelho inventado
nos anos 20 pelo russo Leon Theremin, mais tarde mentor de Robert Moog. O mesmo dos sintetizadores. Sem saber, todos já eram extremamente vintage.